segunda-feira, 20 de maio de 2013

Grandes Reportagens de Outros Tempos. Amador Patrício. «Saía ocultamente, pelo postigo junto às casas onde habitava, e ia procurar o duque para lhe instilar, no espírito vaidoso e inconsiderado, a peçonha da sua maldade. Cativou-o fazendo-lhe entrever que, uma vez morto el-rei João, ele, duque, seria alçado a governar»

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João II e o duque de Viseu
Setúbal, 28 de Agosto de 1484
«Esta pacífica vila vive horas de terror e espanto! As portas estão cerradas e mui bem guardadas, lêem-se grandes e temerosos pregões na praça pública, os ginetes da guarda de el-rei andam a percorrer os caminhos em várias diligências, e há ordem de prisão contra muitas pessoas da primeira nobreza do reino. É que foi descoberta nova conjura contra a vida do rei nosso Senhor, da qual eram cabeças Garcia Menezes, bispo de Évora, e o senhor Diogo, duque de Viseu. Daí as buscas e prisões ordenadas e a justiça que esta noite foi feita na pessoa do jovem e desventurado irmão da rainha D. Leonor. Narremos o que, sobre estes tristes factos, conseguimos apurar.
A sentença, que em Évora se executou, degolando Fernando, duque de Bragança, parece que devia ser servido de aviso a todos os fidalgos irrequietos e ambiciosos que guardassem ainda qualquer animadversão contra o seu rei. Foi, nessa ocasião, paternalmente admoestado o duque de Viseu, a quem Sua Alteza tanto queria, e contra quem não procedeu com mais rigor pelo amor e respeito que dedica à rainha sua esposa. Mas nem o temor do cutelo nem a suavidade dos conselhos desarmaram completamente aqueles maus portugueses, que continuaram a alimentar abominável sanha contra el-rei e a congeminar o crime horroroso de lhe tirar a vida. Começou a ser planeada a nova conjura quando a corte se trasladou a Santarém.
Instalou-se o duque de Viseu na casa do arcebispo de Lisboa, junto ao mosteiro de S. Domingos das Donas, já fora da cerca da cidade. O bispo de Évora, Garcia, poisou nas casas de um tal Afonso Caldeira, junto ao postigo de Santo Estêvão. Este prelado, que, por suas letras, fidalguia e haveres, deveria ser o primeiro a dar o exemplo de vassalo obediente, concebeu tal rancor contra el-rei que foi ele o instigador e mau conselheiro de toda esta negra trama. Saía ocultamente, pelo postigo junto às casas onde habitava, e ia procurar o duque para lhe instilar, no espírito vaidoso e inconsiderado, a peçonha da sua maldade. Cativou-o fazendo-lhe entrever que, uma vez morto el-rei João, ele, duque, seria alçado a governar. A ambição de ser rei turvou completamente o coração do duque de Viseu, e assim é que dentro em pouco, aos dois conspiradores se juntavam Fernando Meneses, irmão do bispo, Fernão Silveira, escrivão da puridade de el-rei e filho do barão de Alvito, Guterrez Coutinho, filho do marechal, a quem el-rei havia dado a comenda de Sesimbra, Álvaro Ataíde, irmão do conde de Atouguia e do prior do Crato, e seu filho Pedro Ataíde, o conde de Penamacor, Lopo Albuquerque e Pero Albuquerque, seu irmão, alcaide-mor do Sabugal, e outros fidalgos.
Como se vê, era vasta a conspiração e abrangia pessoas da mais alta hierarquia. Apesar disso andava tão bem urdida que só tarde Sua Alteza o rei veio a tomar conhecimento dela. Soube-o, segundo aqui se afirma, por denúncia de Diogo Tinoco, irmão de Margarida Tinoco, manceba do bispo de Évora, a quem este, pelo visto, confiava os seus maiores segredos. Tinoco foi, primeiro, dar parte da conjura a Antão Faria, para que informasse o monarca do que se passava; mas, depois, procurou avistar-se com el-rei e falou-lhe directamente, no convento de S. Francisco, desta vila, porém, vestido de frade, para maior dissimulação. Parece que Sua Alteza lhe agradeceu muito o recado e lhe mandou dar 5000 cruzados em ouro e uma renda vitalícia, paga de tão grande serviço». In Amador Patrício, Grandes Reportagens de Outros Tempos, ilustração de Martins Barata, prefácio de Caetano Beirão, Empreza Nacional de Publicidade, Minerva, 1938.

Cortesia de Minerva/JDACT