terça-feira, 7 de maio de 2013

Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde. Grande Prémio APE 1995. Mário de Carvalho. «… começou a desenhar na areia: uma linha oblonga, outra linha oblonga com a mesma origem e que se afastava e curvava para seccionar a primeira. Uma terceira linha a unir o remate das duas outras. Um ponto: o olho do peixe»

jdact

«(…) Quando regressei, já destacamentos de cavalaria auxiliar da VII Legião Gémina patrulhavam os valados, remetendo a seus amos os servos tresmalhados e crucificando sem piedade, em qualquer azinheira os mouros retardatários ou quem com eles houvesse conluio. Restabelecia-se a ordem do Senado e do Povo Romano, entre as ruínas, os gemidos, os miasmas e os rolos persistentes de fumo. Voltou o meu vílico, longo tempo escondido num cabanejo longínquo. A pouco e pouco, deram de si outros escravos, acoitados pelos campos, à espera que viessem as legiões restaurar a ordem que, por mais dura, seria sempre menos temível que as cimitarras tresloucadas que fendiam por fender. Algum gado foi recuperado no mato, como se o tivesse protegido um deus pastor.
Piedosamente, o intendente colou os restos dos lares e fê-los dispor por ordem, com ternura, no seu altar do vestíbulo. Depois instalou esteiras no único cubículo quase intacto que restava, alumiou os restos duma lucerna, e só então nos deixou entrar, a mim e a Mara. Era o regresso dos senhores. Os servos formaram no átrio, quais deles estropiados ou ensanguentados das ruins contingências sofridas. Oito soldados aboletaram-se no que restava do celeiro. Ouvíamos, à noite, o resfôlego das mulas e o estalo dos couces no empedrado. Mas estávamos em segurança. Pela janela, sem madeiros, estrugia o crocitar longínquo de aves torvas. A lua branca fazia mais desolados os sinais da destruição. Mara e eu, apertados um contra o outro, debaixo do meu manto, decidimos que havíamos de refazer tudo, exactamente como estava antes. E nisto Mara falava e falava e falava e falou até que nascesse o sol.

Poucos vestígios da razia são hoje aparentes. É difícil acreditar que estas casas foram reconstruídas, após terem sido em grande extensão arrasadas. Quando esta geração morrer não ficará memória das alterações que em dias de desgraça ensanguentaram estas paragens. Restarão talvez anotações em livros que ninguém lerá, até serem, eles próprios, destruídos, pela crueza do tempo e desatenção dos homens, na melhor das hipóteses. Gozemos agora a paz, Mara e eu, e oxalá não se repitam até ao fim das nossas vidas as depredações que tivemos a desdita de presenciar. Ainda hoje olho com desconfiança quem venha do lado do Oceano. Mas será das praias que acorrem todos os perigos? Outro dia fiquei estarrecido com o que vi. Era uma manhã agradável e fresca e, contra o meu costume, dei comigo a afastar-me e a deambular pela margem do rio. Debruçado sobre uma sebe, um escravozito apanhava amoras para uma sacola. Nem todas iriam parar à minha mesa, decerto. Habitualmente fecho os olhos a estas pequenas transgressões. As silvas dá-as a natureza, não exigem despesas nem cuidados.
Procurei apenas manter-me à distância para que a criança não me visse e não ficasse inutilmente embaraçada. Em dado momento o garoto parou, sentou-se, encheu a boca de amoras, puxou de uma cana e começou a desenhar na areia: uma linha oblonga, outra linha oblonga com a mesma origem e que se afastava e curvava para seccionar a primeira. Uma terceira linha a unir o remate das duas outras. Um ponto: o olho do peixe. Quem te ensinou a desenhar isso? O rapaz sobressaltou-se e olhou-me aterrorizado, com a boca entreaberta, arroxeada do suco das amoras. Nunca tinha visto o seu senhor tão ao perto. Eu devia parecer-lhe terrível, ameaçador, como Júpiter Trovante levantando-se de entre as nuvens.
Ajoelhou-se e, com uma mão, estendeu-me instintivamente um punhado de frutos, enquanto com a outra protegia a cabeça: Perdão, senhor! Competia-lhe sentir-se em falta e não sabia bem de quê. Responde: Quem te ensinou esse desenho? Que tinha sido um cardador que passara por ali. Dos meus? Que não, meu senhor, que era homem forasteiro que ia de longada, com destino certo. E o gaiato tremia, continha o choro com esforço. A boca, tinta de amoras, dava-lhe um ar lastimoso, de mimo trágico. Vai-te! Desapareceu, correndo, por entre as urzes, deixando um rasto de bagas esbarrondadas pelo chão». In Mário de Carvalho, Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, Editorial Caminho, Grande Prémio APE 1995, Prémio Fernando Namora 1996, Prémio Pégaso de Literatura 1996, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0974-X.

Cortesia de Caminho/JDACT