segunda-feira, 6 de maio de 2013

A Mesa dos Reis de Portugal. Casos e Ofícios da Mesa. Séculos XIII a XVI. Rita Costa Gomes. «… uma carta de conto e receita passada a dois uchões do monarca ‘Afonso III’ menciona (…) teriam sido entregues entre 1257 e 1270, além de uma soma de dinheiro que ultrapassava vários milhares de libras…»

Iluminura do saltério da rainha Mary. As bodas de Canaã
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«(…) Como quer que seja, as investigações fundamentais de José Mattoso estabeleceram sem sombra de dúvidas a relevância de que se revestiu o serviço da mesa e a comensalidade no séquito dos primeiros reis de Portugal. Os detentores dos ofícios atrás referidos foram presença assídua na corte dos primeiros monarcas, como se comprova pela sua menção nos documentos, mas a sua identificação permitiu estabelecer que o dapifer, embora muitas vezes nobre, foi geralmente de menor categoria social do que o mordomo. Por exemplo, durante parte significativa do reinado de Sancho I, o copeiro foi um nobre oriundo da Galiza, João Fernandes Lima, o Batissela, cuja ascensão social e política parece indissociável do seu controlo deste ofício, continuando ligado à corte durante o governo de Afonso II. Testemunho indirecto do prestígio e distinção da comensalidade na corte do primeiro rei em Coimbra são também as menções na literatura genealógica a episódios ocorridos durante banquetes em que o rei estava presente. Trata-se de anedotas que transmitem tradições nobiliárquicas pouco lisonjeiras quanto à realeza de Afonso Henriques, como estabeleceu Mattoso. Mas quando nelas se incluem, por exemplo, menções aos modos pouco corteses do nobre transmontano Fernão Mendes Bragança de quem, por causa de uma pouca de nata que lhe caíra pela barba, se riam os demais aristocratas que comiam com Afonso Henriques, essas micro-narrativas também revelam que os banquetes régios eram ocasiões de observação mútua entre a nobreza que frequentava a corte, e que essa experiência comum permaneceu como mais um elemento significante nas memórias linhagísticas da nobreza portuguesa.
Os ofícios e práticas da comensalidade na corte portuguesa ganham, no entanto, uma maior visibilidade e nitidez quando consideramos as realidades do século XIII, o verdadeiro ponto de partida deste ensaio de interpretação. As transformações económicas e sociais sobrevindas com a denominada revolução comercial da Idade Média trouxeram o crescimento da economia monetária e uma profunda mudança nas atitudes e nos usos do dinheiro, transformações que foram acompanhadas pela expansão do uso da escrita em diversos âmbitos da sociedade portuguesa, levando a um maior volume de documentação produzida nas várias esferas da administração régia. O estabelecimento de um registo de chancelaria a partir de 1217 é um exemplo bem conhecido desta evolução, que devemos relacionar também com mudanças sobrevindas no sistema e nas técnicas de contabilidade e registo relacionadas com a Casa do Rei. Dois tipos de textos permitem avaliar a amplitude destas transformações na orgânica dos ofícios ligados à mesa do rei:
  • A legislação, mais abundante a partir de 1220, registando sucessivas medidas prescritivas quanto a este sector da Casa Real, e também os registos contabilísticos a ela ligados, de que nos restam importantes fragmentos para os anos de 1278-1282. Entre 1258 e 1261, o rei de Portugal instituiu um notável conjunto de decretos ou leis regulamentando muitos aspectos da organização da corte, em particular no que diz respeito à Casa do Rei.
Disposições em tudo semelhantes foram estabelecidas pelo vizinho monarca de Leão e Castela, Afonso X, nas Cortes de Valhadolide do mesmo ano de 1258. Deparamos, assim, com uma orgânica composta de vários departamentos distintos ligados à comensalidade e ao sustento do séquito na segunda metade do século XIII, onde em alguns casos se perfilava já uma diferenciação entre oficiais maiores e menores. Por exemplo, encontramos o copeiro, a par do escanção, ligado ao serviço da bebida, e vários oficiais distintos ligados à administração da comida. Nestes se destacava o uchão, que surgia já nomeado entre os oficiais da casa no reinado de Afonso II (r. 1211-1223). Este último vocábulo provém do francês huche, designando uma arca ou contentor de madeira usado para o cereal ou outras vitualhas. Foi vocábulo que se usou também na Galiza, e surge nas fontes portuguesas e galegas com grafias diversas como eichão e ichão. As atribuições do uchão seriam, como sugere a documentação contabilística atrás referida, as de aquisição e armazenamento de alimentos diversos na corte do rei português. Com efeito, uma carta de conto e receita passada a dois uchões do monarca Afonso III menciona que, ao comprador da ucharia posto sob a autoridade daqueles oficiais, teriam sido entregues entre 1257 e 1270, além de uma soma de dinheiro que ultrapassava vários milhares de libras, também uma impressionante quantidade de vitualhas:
  • 1168 vacas, 2425 porcos e 3661 carneiros dos gados do rei, e ainda 677 vacas, 2738 porcos e 6973 carneiros de colheitas, ao que se juntaram 7850 peixotas secas,317 congros secos, 2658 talhos de baleia, e 1656 lampreias secas, todo esse peixe igualmente proveniente de colheitas pagas ao rei pelas populações.
Outro aspecto da orgânica dos ofícios da comensalidade que estas fontes permitem esclarecer é a mencionada divisão entre as duas cozinhas, à qual se refere a lei de 1258 nestes precisos termos:
  • Na cozinha do rei não adubem [preparem] senão de duas carnes, e uma seja de duas guisas, [maneiras], e isto seja no paço. No dia de pescado, para o jantar de três pescados ou de dois. E um pescado seja adubado de duas guisas, e isto seja no paço. E na cozinha d'el-rei de seu corpo, adubem para seu corpo como ele mandar (Portugalie monumenta histórica, Leges et consuetudines, Academia das Ciências, 1856-1873. Ordenações del Rei Dom Duarte, FCG, 1988).
In A Mesa dos Reis de Portugal, Ofícios, Consumos, Cerimónias e Representações, séculos XIII-XVIII, Coordenação de Ana Isabel Buescu e David Felismino, Apresentação de Maria Helena Cruz Coelho, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2011, ISBN 978-972-42-4695-6.

Cortesia de Temas e Debates/JDACT