quarta-feira, 1 de maio de 2013

Semeador de Cultura e Cidadania. Inéditos e dispersos. Bento de Jesus Caraça. Alberto Pedroso. «Intelectual lúcido e atento aos problemas do mundo e do país, profundamente fiel às suas origens, conhecia bem a grande tarefa que está posta, com toda a sua simplicidade crua, à nossa geração. Despertar»

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«Intentava, assim, levar de vencida um atraso de várias décadas e o tradicionalismo reinante, no Estado e no próprio corpo docente universitário. De todo esse labor, realizado de mãos dadas com outros matemáticos e investigadores, de Lisboa e do Porto, viriam a nascer, sucessivamente, diversas instituições, o Núcleo de Matemática, Física e Química (1935), o Centro de Estudos de Matemáticas Aplicadas à Economia (1938) e, em seguida, a Sociedade Portuguesa de Matemática (1940). Igualmente, foram lançadas algumas publicações científicas, entre elas ocupando lugar de relevo a Gazeta de Matemática, surgida em 1940. Oito anos mais tarde, já gravemente doente, Bento Caraça ainda pôde impulsionar e colaborar no lançamento da Revista de Economia, encabeçada por um numeroso grupo de investigadores, muitos deles seus antigos discípulos.
A actuação inovadora do professor e do pedagogo, a actividade pioneira do cientista e, ainda mais, a lucidez e a determinação da intervenção política de Bento Caraça de há muito constituíam para Salazar e o seu regime um pesadelo de todas as horas. Por tudo isto, em Outubro de 1946, e sob o pretexto da assinatura e divulgação pública do documento O MUD perante a Admissão de Portugal na ONU, o ditador não teve pejo em demiti-lo, assim como a Mário Azevedo Gomes, de professor do seu Instituto, primeiro acto da monstruosa vaga de demissões que, em Junho do ano seguinte, iria decapitar a nossa Universidade de um grande número dos seus melhores quadros.

Em Luta Contra a Guerra e o Fascismo na Europa
As preocupações intelectuais de Bento Caraça não podiam, no entanto, ter por confins as salas de aula do edifício da Rua do Quelhas, nem tão-pouco se esgotavam nas acções de investigação levadas a cabo no âmbito do Movimento Matemático, do CEMAE e da Gazeta de Matemática ou nas tarefas de presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática. Intelectual lúcido e atento aos problemas do mundo e do país, profundamente fiel às suas origens, Bento Caraça conhecia bem a grande tarefa que está posta, com toda a sua simplicidade crua, à nossa geraçãodespertar a alma colectiva das massas. Sabia também, como afirmou mais adiante na mesma conferência, que precisamos para não trair a nossa missão, de nos forjarmos personalidades íntegras, de analisarmos o nosso tempo e de actuar como homens dele.
E sabia, igualmente, que as frentes de luta pela cultura, pelo ensino, pela ciência, não podem ser dissociadas das frentes de luta económica, social e política, todas se integrando na frente mais ampla e abrangente da luta pela transformação da sociedade. Os primeiros passos desta caminhada terão sido dados, talvez, à volta de 1928-29. Existe no seu espólio um testemunho de muito interesse, as duas cartas que dirigiu a F. Desphelippon, membro do conselho de administração do semanário Monde, de tendência marxista e dirigido pelo escritor comunista Henry Barbusse. Bento Caraça não era, e as duas cartas demonstram-no bem, um simples leitor e assinante do periódico. Com efeito, respondendo ao apelo do Monde, enuncia detalhadamente na primeira carta, de 18/9/1929, a sua opinião sobre as secções que o semanário deveria ter, quais os temas principais que deveria tratar regularmente, entre eles, sublinhando a necessidade de uma ou mais páginas de actualidade, uma página de vulgarização de doutrinas políticas e sociais e, por último, uma página de informação económica, política e social sobre a URSS.
Na segunda carta, de 16/10/1930, depois de ter anunciado a projectada criação de um núcleo de Amigos do Monde, Caraça traça um quadro esclarecedor das preocupações que em Portugal também existiam à face dos preparativos de uma nova guerra, assim como da necessidade igualmente sentida de organizar o movimento de massas que a ela se opusesse, um movimento que apenas esboçava os primeiros passos tímidos, como a carta deixa entrever:
  • Ao mesmo tempo gostaria de ter indicações sobre organizações como a Liga Anti-Imperialista, a Liga Internacional contra o serviço militar, que acaba de ser criada, etc. Aqui, a juventude radicaliza-se e há muita gente que desejaria realizar qualquer acção internacional, mas está desorientada, o divórcio entre os jovens e os velhos é completo; estes dormem sobre recordações antigas e aqueles despertam mas sem saber ao certo, creio eu, o que pretendem. O momento é único para uma acção séria e vós podeis ajudar-nos nessa obra.
Dois anos mais tarde, em Novembro de 1932, seguro e determinado, toma posição pública contra as ameaças de guerra que dia a dia se adensavam sobre a Europa. Admirador de Romain Rolland (dos seus ideais, da sua obra e dos seus apelos contra a guerra e contra o fascismo) e paladino das recomendações do Congresso Internacional contra a Guerra, organização pela Frente Mundial contra a Guerra e realizado em Amesterdão em Agosto de 1932, Caraça publicou no semanário Liberdade o artigo A Luta contra a Guerra». In Alberto Pedroso, Bento de Jesus Caraça, Semeador de Cultura e Cidadania. Inéditos e dispersos, Campo das Letras Editores, Porto, colecção Cultura Portuguesa, 2007, ISBN 978-989-625-128-4.

Cortesia de Campo das Letras/JDACT