sábado, 11 de maio de 2013

A Saga / Fuga de J. B.. Prémios Cidade de Barcelona e da Crítica em 1972. Prefácio de José Saramago. Gonzalo Torrente Ballester. «História de uma cidade imaginária, cujos habitantes procuram encontrar a sua autêntica personalidade, lutando por conferir algum sentido à sua existência individual e à trajectória da sua comunidade»

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Prefácio
Alguém que não seja eu, um lugar que não seja este
«Todos sabemos como a história começa: naquele lugar de La Mancha, cujo nome nunca viremos a conhecer, vivia um fidalgo pobre chamado Alonso Quijano que, um dia, em consequência do muito ler e do muito imaginar, passou do juízo à loucura, tão naturalmente como quem abre e fecha uma porta. Assim o quis Cervantes, decerto porque a mentalidade do seu tempo repugnaria aceitar que um homem, na posse plena das suas faculdades mentais, e ainda que apenas personagem de romance, decidisse, por um simples acto de vontade, deixar de ser quem tinha sido para mudar-se em outro: graças à loucura (alienação / alheação), a rejeitação das regras do jogo racional torna-se pacífica, na medida em que irá permitir ignorar qualquer aproximação que não proceda segundo as vias redutoras que têm por objectivo a cura. Do ponto de vista dos contemporâneos de Cervantes e das personagens do romance, Quijote é louco porque Quijano enlouqueceu, não sendo sequer enunciada ou insinuada a hipótese de ser Quijote, tão somente ou, pelo contrário, de modo supremo, o outro de Quijano. Contudo, Cervantes tem uma visão muito precisa da irredutibilidade das consequências da mudança de Quijano, quando reforma e reorganiza, de alto a baixo, o mundo que vai receber essa identidade nova que é Quijote, mudando os nomes e as qualidades de todas as coisas: a estalagem é castelo, os moinhos são gigantes, os rebanhos exércitos, Aldonza transforma-se em Dulcineia, para não falar do mísero cavalo promovido a Rocinante e de uma bacia de barbeiro alçada à dignidade de elmo de Mambrino. Já Sancho, tendo embora de viver as aventuras e imaginações Quijote, não precisa enlouquecer nem mudar de nome: até mesmo quando o proclamarem governador de Barataria, continuará a ser, no físico e no moral, mas sobretudo na sólida identidade que o define, Sancho Panza. Nada mais, mas também nada menos.
Sabemos, igualmente, de Fernando Pessoa e dos seus heterónimos. É certo que Pessoa não precisou enlouquecer para tornar-se outros, mas é interessante, no entanto, verificar como ele, para dar do seu caso uma explicação que não relevasse da mera vontade de ser outro ou, mais complexamente, da necessidade de não ser quem é, se diagnostica a si mesmo como histero-neurasténico, desta maneira passando, com perturbador à-vontade, das auras poéticas para o foro clínico. Justifica, assim, os seus heterónimos, atribuindo-os à sua tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Falar de despersonalização não parece contudo muito rigoroso, quando somos testemunhas, não de uma despersonalização, situação em que o poeta, tendo deixado de ser quem era, se limitasse a interrogar-se sobre quem poderia ter sido, mas a uma pluripersonalização sucessiva, em que o poeta, no instante mesmo em que deixou de ser ele próprio, assiste à imediata ocupação do vazio por uma nova entidade poética, tornando portanto a ser alguém na medida em que pôde tornar-se outro. É interessante, repito, observar como Pessoa nos quer fazer crer na origem orgânica dos seus heterónimos, aliás em contradição flagrante e total com a descrição que faz do nascimento deles, que mais parece corresponder a uma sequência de lances de um jogo dentro doutro jogo:
  • lembrei-me um dia de inventar um poeta bucólico, aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir uns discípulos, arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo, Álvaro de Campos...
É de supor que o aparecimento dos outros heterónimos ou semi-heterónimos, como fossem António Mora, Vicente Guedes ou Bernardo Soares, tenha percorrido caminhos mentais similares e modos de elaboração e definição paralelos. Que nos diz Cervantes da vida de Alonso Quijano antes que a loucura tivesse transformado o mal favorecido homem, que o foi tanto de fortuna como de figura, naquele ardoroso e infatigável cavaleiro a quem as derrotas nunca diminuíram o ânimo, antes pareceu encontrar nelas o alento para o combate seguinte, infinitamente perdido e infinitamente recomeçado? Cervantes, dessa vida enigmática, nada nos diz. E, contudo, Alonso Quijano frisava já os cinquenta anos de idade quando Cervantes o plantou inteiro na primeira página do Quijote. Mesmo num pueblo perdido de La Mancha, tão perdido que nem o seu nome se achou, um homem de cinquenta anos por força teve uma vida, acidentes, encontros, sentimentos vários. Seus pais, quem foram? De que irmão ou irmã lhe veio a sobrinha? Não teria Alonso Quijano tido filhos, um varão, por exemplo, que por não ter nascido à sombra do santo sacramento do matrimónio foi deixado ao Deus-dará? E a mãe desse filho, quem terá sido? Uma moça da aldeia, barregã por uns tempos, ou apenas tomada de ocasião em tarde de calor, no meio da seara ou atrás dum valado?» In Gonzalo Torrente Ballester, Ediciones Destino, Barcelona, 1972, A Saga / Fuga de J. B., Prémios Cidade de Barcelona e da Crítica em 1972, Prefácio de José Saramago, 1991, Publicações Dom Quixote, Letras de Espanha, Lisboa, 1992, ISBN 972-20-1016-6.

Cortesia de Dom Quixote/JDACT