sábado, 2 de janeiro de 2021

Inês da Minha Alma. Isabel Allende. «Deixei dinheiro suficiente à igreja para que uma vez por semana, durante trezentos anos, rezem uma missa pelo descanso da alma do nobre fidalgo don Rodrigo Quiroga…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Crónicas de dona Inés Suárez, entregues à Igreja dos Dominicanos para sua conservação e resguardo pela sua filha, dona Isabel de Quiroga, no mês de Dezembro do ano de Nosso Senhor de 1580. Santiago da Nova Extremadura. Reino do Chile.

«(…) A verdadeira razão pela qual decidiu partir sozinho é que não queria deixar-me assistir ao triste espectáculo da sua doença, já que preferia ser recordado a montar a cavalo, comandando os seus corajosos homens, combatendo na região sagrada a sul do rio Bío-Bío, onde as ferozes hostes mapuche se preparavam então para a guerra. Estava no seu pleno direito de capitão, por isso aceitei as suas ordens como a esposa submissa que nunca fui. Levaram-no até ao campo de batalha numa maca e, uma vez lá chegado o seu genro, Martin Ruiz Gamboa, amarrou-o ao cavalo, tal como fizeram com El Cid, o Campeador, para assustar o inimigo com a sua presença. Lançou-se para a frente dos seus homens como um perfeito demente, desafiando o perigo e com o meu nome nos lábios, só que não encontrou a tão desejada morte. Trouxeram-mo de volta muito doente, num catre improvisado; o veneno do tumor já tinha invadido o seu corpo. Qualquer outro homem já teria morrido há muito, devido aos malefícios que a doença lhe provocara e ao cansaço da guerra, mas Rodrigo era forte. Amei-te desde o primeiro momento em que te vi e vou amar-te para sempre, Inés, disse-me, no meio da sua agonia, acrescentando que queria ser enterrado sem grande alarido e que devíamos mandar rezar trinta missas pelo descanso da sua alma. Vi a Morte, um pouco desfocada, tal como vejo as letras desta folha, mas inconfundível. Então chamei-te, Isabel, para que me ajudasses a vesti-lo, uma vez que Rodrigo era demasiado orgulhoso para mostrar os destroços da sua doença às criadas. Só a ti, sua filha, e a mim, nos permitiu colocar-lhe a armadura completa e as botas de rebites. Depois, sentámo-lo no seu cadeirão favorito, com o elmo e a espada sobre os joelhos, para que pudesse receber os últimos sacramentos e partir com dignidade, tal como tinha vivido. A Morte, que não tinha saído do seu lado e aguardava discretamente que acabássemos de o preparar, envolveu-o então nos seus braços maternais e fez-me sinal para que me aproximasse e sentisse o último suspiro do meu marido. Inclinei-me sobre o seu corpo e dei-lhe um beijo na boca, um beijo de amante. Morreu nesta casa, nos meus braços, numa tarde quente de Verão.

Não pude cumprir as instruções de Rodrigo para que o seu funeral fosse discreto, porque era o homem mais querido e respeitado do Chile. A cidade de Santiago mobilizou-se inteira para chorar a sua morte e, de outras cidades do reino, chegaram incontáveis manifestações de pesar. Anos antes, o povo tinha saído para as ruas para celebrar a sua nomeação como governador com chuvas de flores e salvas de mosquete. Foi sepultado com as honras que merecia na Igreja de Nossa Senhora das Mercês, que ele e eu mandáramos erigir para glorificar a Virgem Santíssima e onde em breve repousarão também os meus ossos. Deixei dinheiro suficiente à igreja para que uma vez por semana, durante trezentos anos, rezem uma missa pelo descanso da alma do nobre fidalgo don Rodrigo Quiroga, bravo soldado de Espanha, alcaide, Adelantado (Designação arcaica utilizada pelos Conquistadores espanhóis durante os séculos XVI e XVII para a categoria de governador ou responsável máximo de uma província, cuja responsabilidade seria, entre outras, agir como representante da Coroa espanhola junto das colónias. (N. da T.) e duas vezes Governador do Reino do Chile, Cavaleiro da Ordem de Santiago, meu marido. Estes meses sem ele foram uma eternidade.

Não devo antecipar-me, pois, se narrar os feitos que recheiam a minha vida sem qualquer rigor nem ordem, corro o risco de me perder pelo caminho; uma crónica deve seguir a ordem natural dos acontecimentos, mesmo que a memória seja uma perfeita barafunda sem lógica. Escrevo de noite, sobre a mesa de trabalho de Rodrigo, enrolada na sua manta de alpaca. A guardar-me o quarto está Baltasar, bisneto do cão que viajou comigo até ao Chile e me acompanhou durante catorze anos. O primeiro Baltasar morreu em 1553, o mesmo ano em que mataram Valdivia, mas deixou-me os seus descendentes, todos enormes, de patas desajeitadas e pêlo rijo. Esta casa é fria, apesar das carpetes, cortinas, tapeçarias e braseiros que os criados mantêm cheios de carvão incandescente. Queixas-te muitas vezes, Isabel, que não se consegue respirar de tanto calor; deve ser porque o frio não está verdadeiramente no ar, mas dentro de mim. Consigo anotar as minhas memórias e pensamentos com tinta e papel graças ao clérigo Gonzalez Marmolejo, que se deu ao trabalho, entre os seus múltiplos esforços para evangelizar selvagens e consolar cristãos, de me ensinar a ler. Na altura, era apenas um capelão, mas chegou a ser o primeiro bispo do Chile e também o homem mais rico deste reino, como contarei mais adiante. Morreu sem levar nada para a cova, mas deixou um rasto de boas acções que lhe valeram o amor da população. Ao fim e ao cabo, só se tem verdadeiramente aquilo que se deu, como dizia Rodrigo, o mais generoso dos homens.

Comecemos pelo princípio, pelas minhas primeiras memórias. Nasci em Plasencia, no Norte da Extremadura, cidade fronteiriça, guerreira e religiosa. A casa do meu avô, onde cresci, ficava a um passo da catedral, a que carinhosamente chamavam de La Vieja, uma vez que datava apenas do século XIV. Cresci à sombra da sua torre invulgar coberta de escamas trabalhadas. Nunca mais vi a ampla muralha que protege a cidade, a esplanada da Plaza Mayor, as suas ruelas sombrias, os palacetes de pedra e as galerias de arcos, nem o pequeno solar do meu avô onde ainda vivem os netos da minha irmã mais velha. O meu avô, um artesão que trabalhava o ébano, pertencia à Confraria de Vera Cruz, uma honra muito superior à sua condição social. Sedeada no convento mais antigo da cidade, essa confraria encabeça as procissões da Semana Santa. Vestido com o hábito roxo, cinto amarelo e luvas brancas, era um dos que levavam a Santa Cruz. Na sua túnica havia manchas de sangue, sangue dos chicotes com que se flagelava para partilhar do sofrimento de Cristo a caminho do Gólgota». In Isabel Allende, Inês da Minha Alma, 2006, Porto Editora, 2019, ISBN 978-972-004-749-6.

Cortesia de PortoE/JDACT

JDACT, Isabel Allende, Literatura, Cultura, Chile,