sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Estudos de História da Cultura Portuguesa. Linguística e Paleo-Etnologia. Justino Mendes Almeida. «Por outro lado, se o famoso autor é Gil Vicente, quem o desconheceria na época e de que serviria então o anonimato (a que Révah até chama semianonimato)? Isto, não obstante o esforço enorme que realizou para demonstrar…»

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Obra da Geraçã Humana. Uma Bella Moralidade Quinhentista
«(…) Mas como se explica então o anonimato? Esclarece Révah, com argumentação, em nosso entender, aqui um pouco mais frouxa. Il est possible d'expliquer I’anonymat à n’importe quelle date de n’importe quel auto portugais du XVeme siècle. O Auto não foi impresso em 1536, que é apenas um terminus a quo, mas entre 1536 e 1560 (final da actividade de Germão Galharde, que teria sido o impressor). Para evitar a perseguição inquisitorial a Gil Vicente, expressa em particular no Index de 1551 (recorde-se que, das doze obras em vulgar censuradas, sete são autos de Gil Vicente), a edição não traz o nome do autor. Será assim? Parece-nos difícil prová-lo, não tanto por se tratar de um auto chamado de devaçam, não herético, mas principalmente porque a data de 1536 está lá, gravada na portada, e neste ano ainda não havia Indices portugueses..., pelo menos o primeiro conhecido é de 1547. Por outro lado, se o famoso autor é Gil Vicente, quem o desconheceria na época e de que serviria então o anonimato (a que Révah até chama semianonimato)? Isto, não obstante o esforço enorme que realizou para demonstrar que aquela data de 1536 não é a da impressão da obra, mas a da composição da portada, o que se aceitaria se a Obra da Geraçã humana contivesse um colofão com a data precisa da edição, o que não se verifica. Parece-nos até detectar, neste aspecto, uma certa contradição na argumentação de Révah, quando escreve:
  • On peut gager que les premières éditions de nos deux Autos commençaient par une indication semblable à celle du premier Autos (sic) das Barcas: Auto de moralidade composto per Gil Vicente, por contemplaçam da serenissima e muyto catholica raynha dona Lianor nossa senhora: e representado per seu mandado ao poderoso príncipe e muy alto rey dom Manuel, primeíro de Portugal deste nome.
Já se perguntou, Costa Pimpão, e com razão, que tinham os inquisidores que ver com representações doutrinalmente impecáveis? Respondeu-se (Révah) que o Auto de Deos Padre foi definitivamente proibido pelo Index de 1624, sendo embora uma obra de pura devaçam, mas a resposta não satisfaz. Conviria antes citar exemplos retirados dos Indices de 1551, 1559, 1564, ou mesmo 1581 ou 1597. Estudámos o critério determinado no Index de 1624 pelo purificador dos purificadores, Fernão Martins Mascarenhas, a propósito de um outro auto anónimo do século XVI o Dom Andre, e pudemos reconhecer como é bem diferente do que fora seguido em 1551. Outro argumento pró-vicentino apresentado por Révah consiste em afirmar que o Auto foi representado perante a corte do rei Manuel (representação que Teófilo Braga foi o primeiro a referir), e, portanto, só um autor como Gil Vicente teria esse privilégio. E pergunta: como se explicaria que um émulo de Gil Vicente, se o houve, desaparecesse logo completamente da cena literária? Invoca, a propósito, o testemunho de quatro grandes polígrafos da época, que não conheceram outro dramaturgo de renome senão Gil Vicente: André de Resende, Garcia de Resende, Fernando Oliveira e João de Barros. Mas, como se poderá defender que o Auto foi representado na corte, com base somente neste passo de uma fala do lavrador Joam d’Acenha:

Tomay vos hos ovos antes,
e a cestinha com a palha,
ca, bofee, si Deos me valha,
que nem ho Juyz d’Abrantes,
nem ho porteyro dos Infantes
nam me chimparam daqui.

In Justino Mendes de Almeida, Estudos de História da Cultura Portuguesa, Academia Portuguesa da História, Universidade Autónoma de Lisboa, O Pernix Lysis, Lisboa, 1996.

Cortesia da AP. de História/JDACT