quinta-feira, 28 de agosto de 2014

História da Europa Medieval. Papa Negro. Ernesto Mezzabota. «Ter-me-ão os ferimentos perturbado a memória? Terão os meus irmãos dispersos abandonado a abadia, ou deixar-se-iam adormecer na antiga inquietação? E um suor frio inundou a fronte do desconhecido…»

Cortesia de wikipedia

O Peregrino
«(…) No modo como ele olhava para todos aqueles enfermos de corpo e da alma era fácil descobrir a atroz tranquilidade de um inquisidor, cujo máximo prazer seria meter nos horrendos cárceres, ou deitar às fogueiras, um povo inteiro, repetindo as horríveis palavras dirigidas pelo abade de Citeaux a Lavaur: Matai, matai tudo: Deus saberá distinguir os que lhe são fiéis! Ao chegar perto do mosteiro, o desconhecido parou e pareceu orientar-se. Decerto o muro que ficava à esquerda da grande porta sofrerá alguma alteração, pois que passou e tornou a passar três ou quatro vezes naquele sítio, como se não pudesse acreditar que estava vendo. A porta pequena era aqui, lembro-me bem, murmurava o peregrino. Ter-me-ão os ferimentos perturbado a memória? Terão os meus irmãos dispersos abandonado a abadia, ou deixar-se-iam adormecer na antiga inquietação? E um suor frio inundou a fronte do desconhecido ao vir-lhe aquele pensamento, que evidentemente significaria para ele uma grande desgraça; mas, de repente, soltou um grito de alegria, descobrira, a poucos passos do lugar costumado, aquilo que procurava. Uma grande estrela de madeira dourada erguia-se sobre a arquitrave da pequena porta, que na verdade não parecia merecer tão belo ornamento. Aquela portinha, que teria escapado à observação de quem se colocasse diante da porta principal, tão bem oculta estava pelos ornamentos e florões maciços da fachada tinha toda a aparência de já não servir havia muito tempo. Uma espessa camada te pó cobria a porta, que em tempo fora pintada de verde. Aos cantos pendiam teias de aranha carregadas de pó, indício seguro de que aquela porta para ali estava esquecida e abandonada, sem servir havia muito. E contudo, se observasse com alguma atenção, era fácil reconhecer que ali devia haver algum mistério; primeiro, porque toda aquela ostentação de abandono tinha em si mesma a prova da sua pouca sinceridade, e depois, porque, apesar de todas as precauções, as dobradiças estavam bem untadas e brilhavam ao sol. O peregrino esperou que o sol se tivesse escondido de todo e que na esplanada do mosteiro não houvesse ninguém; depois aproximou-se da pequena porta, e, ajoelhando no limiar, disse em verso: Procurei a luz, encontrei as trevas. Bati e a porta estava fechada. Piedade para mim! A pequena porta girou sem ruído nos gonzos e deixou ver a entrada de um escuro corredor.
O peregrino, sem mostrar a mínima surpresa por aquele facto, que decerto deixaria cheia de espanto outra qualquer pessoa, escoou-se pelo corredor, e a porta fechou-se-lhe imediatamente nas costas. O misterioso personagem deu dois ou três passos incertos, como quem não sabia o terreno que pisava, porque a mudança, que observara na porta, indicava que o lugar misterioso, que procurava, tinha sido mudado para outra parte do mosteiro. Mas pouco tempo durou a incerteza do viajante. Sentiu apoiar-se-lhe com força nos ombros mão estranha, uma voz murmurar-lhe ao ouvido: Sabes que o caminho que segues pode conduzir-te à morte. Sou um chefe, respondeu o desconhecido com um aceno de plena tranquilidade. Um chefe?!... E que prova me apresentas tu para provar que o és? Posso mostrar-te a imagem d’Aquele que foi, circunda pelas imagens dos homens. A grande medalha!, exclamou a voz, em que se reconhecia um misto de espanto e respeito. A grande medalha, a dos sete luminares da ordem!, replicou severamente o peregrino. Vamos, irmão, este caminhar nas trevas deve durar ainda muito tempo? Isso acabou, mestre, respondeu a voz do desconhecido. Estes mistérios não se fizeram para quem conhece os outro: Brilhou então uma luz viva na extremidade do corredor, o peregrino caminhou com passo firme adiante do seu novo companheiro, que era uma espécie de monge, de cabeça coberta por um capuz, que apenas lhe deixava ver os olhos. Seguindo aquele corredor, os dois homens chegaram, por uma rampa quase insensível, ao centro de um subterrâneo, que correspondia ao altar-mor da igreja de Mont-Serrat. As numerosas grutas que havia na montanha, tinham facilitado aos frades o meio de tornarem impenetráveis os seus esconderijos». In Ernesto Mezzabota, O Papa Negro, História da Europa Medieval e seus costumes, tempo da narrativa; entre 1500 -70 d. C, 1848, corrigido por Milton Barros Carvalho, Brasil, 2009.

Cortesia de Wikipedia/JDACT