quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Pedro Lembrando Inês. Poesia. Nuno Júdice. «Um pintassilgo desce pelas escadas da canção, empoleira-se nos seus versos, estende o bico para que o canto não se perca pelo chão. Ainda bem que é para o céu que ele está a olhar…»

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Pedro, Lembrando Inês
O amor, dizes-me
«Escuto o silêncio das palavras. O seu silêncio
suspenso dos gestos com que elas desenham
cada objecto, cada pessoa, ou as próprias ideias
que delas dependem. Por vezes, porém, as
palavras são o seu próprio silêncio. Nascem
de uma espera, de um instante de atenção, da
súbita fixidez dos olhos amados, como se
também houvesse coisas que não precisam de
palavras para existir. É o caso deste sentimento
que nasce entre um e outro ser, que apenas
se adivinha enquanto todos falam, em volta,
e que de súbito se confessa, traduzindo em
breves palavras a sua silenciosa verdade».

Natureza viva
«Um pintassilgo desce pelas escadas
da canção, empoleira-se nos seus versos,
estende o bico para que o canto
não se perca pelo chão. Ainda bem que é
para o céu que ele está a olhar: assim,
não vê os teus cabelos que se espalham
por entre ervas e ramos, nem os teus
braços que se apoiam ao declive da
encosta. No entanto, a tua respiração
canta com ele; e só quando o vento
o enxuta do ramo é que um silêncio
se faz para que, de dentro dele, nasçam o
bater de asas do seu voo e o teu riso, ao
veres um pássaro saltar de dentro do amor».

Anjo da Guarda
«O anjo que desce do espírito com a tarde,
que queima o chão da página, que
mancha de orvalho os campos do inverno,
onde a erva insiste em manter-se,
tem o olhar cansado do infinito. Pego-lhe
na mão, ouvindo o arrastar de asas
por trás de mim, enquanto avançamos
pelo alcatrão. É certo que um anjo não
foi feito para andar; e que os seus passos
desenham um voo desajeitado na hesitação
bêbeda de um rumo. Mas sento-o na
cadeira da taberna; ponho à sua frente
o amargo cálice da aguardente matinal; e
vejo-o engolir até ao fundo as gotas de
fogo do inferno, saboreando o sol que
desponta, por um instante, de entre as
nuvens que o expulsaram».
Poemas de Nuno Júdice, in ‘Poesia: Pedro, Lembrando Inês

In Nuno Júdice, Pedro Lembrando Inês, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2001, 2009.

Cortesia de DQuixote/JDACT