segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Peregrino e Estrangeiro. Ensaios. Marguerite Yourcenar. «… aconchegada a si própria no decurso de alguns séculos, excepcional e única, oferecendo simultaneamente um exemplo ideal da arte de pensar, das virtudes heróicas, da beleza e da arte de viver»

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A Alguém que me perguntava se o Pensamento Grego continua válido para Nós
«O pensamento grego, ou melhor, as diferentes formas tomadas pelo pensamento dos filósofos gregos, é essencialmente minoritário: quero eu dizer que, na própria Grécia e na sua época, essas ideias foram de todas as vezes apanágio de um pequeno número. Não falemos do pensamento grego no seu conjunto: falemos das escolas pré-socráticas, da Academia, dos Peripatéticos, do Pórtico ou dos Jardins de Epicuro. No decurso do último século, demasiados espíritos bem intencionados (Renan era um deles e poderíamos citar muitos outros) tentaram apresentar ao público, uma Grécia perfeita e, por assim dizer, aconchegada a si própria no decurso de alguns séculos, excepcional e única, oferecendo simultaneamente um exemplo ideal da arte de pensar, das virtudes heróicas, da beleza e da arte de viver. Esta imagem ideológica e académica era falsa; não correspondia, bem entendido, à realidade viva de um povo durante vários séculos; contribuiu muito, sobretudo em França, para o público perder o gosto pelas leituras e pelos estudos gregos: não se sentia interesse por aquela estátua demasiado perfeita, talhada num mármore demasiado branco. Mas a realidade é diferente. Em matéria de filosofia em todo o caso, o que se passa com a Grécia é o mesmo que se passa com a China, que nunca ninguém, salvo alguns ingénuos entusiastas do século XVIII, que a viam de muito longe, pensou apresentar como a imagem exemplar da perfeição humana no decurso da sua história milenária, mas que; tal como a Grécia, soube formular, ao longo dos séculos, todas as vistas possíveis sobre a metafísica e a vida, o social e o sagrado, e oferecer, para os problemas da condição humana, soluções variadas, convergentes ou paralelas, ou muitas vezes diametralmente opostas, de entre as quais o espírito possa escolher. Gregas ou chinesas, o seu valor, tal como o de uma equação algébrica, permanece o mesmo, sejam quais forem as realidades particulares a que cada geração o aplica. Passa-se com Confúcio e com Mêncio, com o místico Lao-Tseu ou com o hedonista Motsu, ou ainda com os pragmáticos Legalistas, o mesmo que com os chefes das diferentes escolas gregas: representam pontos de v:ista que não cessarão de se combater, de se sustentar mutuamente ou de se corrigir, uns pelos outros, enquanto o homem for homem. No futuro tal como no passado, numerosos espíritos tornarão inevitavelmente a ter esses pontos de vista ou a propor essas mesmas soluções, espontaneamente, e, por assim dizer, pela força das coisas, sem sequer se referirem aos seus predecessores. Todavia, é provável que, a menos de uma catástrofe que faça desaparecer todas as culturas, venham por vezes a apoiar-se conscientemente sobre esses homens que enfrentaram os mesmos problemas, e que isso confirme e fortaleça o seu sentimento da continuidade e da fraternidade humanas através do tempo». In Marguerite Yourcenar, En Pélerin et Étranger, Gallimard, 1989, Peregrino e Estrangeiro, Ensaios, Livros do Brasil, Lisboa, 1990.

Cortesia LBrasil/JDACT