domingo, 11 de abril de 2021

Beije-me onde o Sol não Alcança. Mary del Priore. «Quem não se lembrava da jovem de longos cabelos, olhos grandes, mãos e pés de fada, arrebatada pelo estrangeiro? Há vidas mortas, mas não esquecidas»

Cortesia de wikipedia e jdact

Fazenda Bela Aliança. Março de 1893

«(…) Quem está ao pé do leito se curva, une as mãos, se abraça, troca palavras com Maurice. Fragilizados pelo meu fim próximo, vão encontrar reconforto nos gestos e palavras, fortificando o mundo dos vivos. Tais ritos protegem os que ainda estão nele. Bruscamente compreendi: como são importantes, uns para os outros, aqueles que seguem vivendo. Não, não haverá milagre, nem vou sentar no caixão como fez a moça que julgavam finada, na matriz de Nossa Senhora das Dores de Piraí. Fecharei os olhos para sempre. Hoje mesmo. Agora, tudo escuro. Frio. Muito frio. O Senhor é meu Pastor, nada me faltará. Mal consigo acompanhar as preces e mexo os lábios com dificuldade. As palavras não têm som. Sinto os toques da extrema-unção: nos olhos, orelhas, nariz, boca e mãos, instrumentos do pecado. Quero despedir-me de Maurice. Dizer-lhe que o amei. Não, que o amo. Mas o odeio, também. O amor: foi mais fácil fazer do que viver. Beije-me, Maurice, beije-me Maurice, beije-me onde o sol não alcança. Silêncio. Mais frio. Novamente, a boca que mais parece um buraco negro.

Piraí, sede de O Pirahí. Março de 1893

Eu a conhecia desde criança. Nascida Ana Clara Breves Moraes, Nicota, condessa Haritoff, neta do barão de Piraí, fechou os olhos. Jovem, tinha quarenta e três anos ao falecer. Do que morreu? Falaram muito: tristeza, histeria, envenenamento. O corpo frágil, pois Nicota era miúda, foi repousar no cemitério da família, na fazenda Três Saltos, a sede dos potentados da região. A pequena colina coberta de túmulos ao lado da igreja particular, dedicada a São Joaquim, dorme tranquila, abraçada aos seus mortos. Piraí e seus arredores se cobriram de luto. Da serra do Sinfrónio a São João Baptista do Arrozal, de Rio Claro a São João da Barra, de Vassouras a Valença, os sinos chamaram para as missas em sufrágio da sua alma. Às margens do rio Piraí, rio dos peixes ou do Paraíba, mar ruim, à hora das avé-marias, recomendou-se a falecida à ultima misericórdia. Alfaiates, seleiros, sapateiros, ferreiros, boticários, bilhares e até fogueteiros fecharam suas portas na cidade. Casas de secos e molhados fizeram o mesmo. Nos becos do Gil, do Alexandre, do Camarão, as mulheres emudeceram e rezaram o terço. A família distribuiu esmolas entre os mais pobres. Era o costume. Em toda a parte, a gente perguntava: o que a levou?

Quem não se lembrava da jovem de longos cabelos, olhos grandes, mãos e pés de fada, arrebatada pelo estrangeiro? Há vidas mortas, mas não esquecidas. Nicota cresceu nos terreiros de café, brincando com as molecas, festejando São João, bordando roupinhas para o Menino Jesus da matriz de Sant’Ana. Vi seus peitinhos nascerem atrás da camisa e, depois, vir a doença. Todos conheciam a filha do coronel de polícia Silvino José, a irmã do futuro visconde de Benevente, a sobrinha dos reis do café, Joaquim José e José Souza Breves. O avô virou barão de Piraí vinte anos antes do casamento de Nicota com o conde russo. Embora ostentassem títulos, os membros da família tinham raízes nas classes mais humildes dos lugares de onde saíram para o vale fluminense, e, apesar de ostentarem fulgurantes brasões, eram oriundos das periferias. Não vieram de mais que as terceiras, quartas ou quintas linhas da pequena nobreza portuguesa. Muitos queriam esquecer as suas próprias origens. Delas despontavam avós negras e cativas.

O primeiro deles a chegar à região de São João Marcos foi o patriarca António Souza, que adoptou por alcunha familiar o Breves, e ficou conhecido por António Cachoeira. Ele é o tronco dos dois ramos que, posteriormente, de forma curiosa, se denominavam e separavam pela riqueza, com os epítetos de Breves Graúdos e Miúdos. Ainda que, pela força da origem insulana, fossem todos miúdos. Todos descendentes de Maria Oliveira, mulher solteira, e de pai incógnito.

O pai, coronel Silvino, mandava em todos, do padre à força policial, e se encarregava de manter a ordem nas terras da família. Negro fujão, quilombola, ladrão, roubo de gado, invasão de terras? O couro comia. Protegia o comércio de víveres e escravos feito pelo cunhado, Joaquim Breves, do litoral de Marambaia e Itacuruçá para o alto da serra. Contrariá-lo, ninguém se atrevia. Sua mulher, Ana Clara, era um dos nove filhos sobreviventes de quinze, dos barões de Piraí. Bela? Não. Um rosto oval, regular e severo emoldurado pelos cabelos em trunfa. A boca era um traço descendente. O casal possuía três fazendas, Bela Aliança, Botafogo e Bela Vista, em Piraí, além de cinco sítios. Muito feio, Silvino tinha uma cabeça simiesca, olhos apertados, lábios grossos e grande distância entre o nariz e a boca, cabeça que repousava sobre um tronco atarracado. Além de Nicota, tiveram mais cinco filhos: José Feliciano, a graciosa Cecília, Caetano, Manuel Eugênio e Rita Belmira». In Mary del Priore, Beije-me onde o Sol não Alcança, 2015, Editora Planeta, 2015, ISBN 978-854-220-588-6.

Cortesia de EPlaneta/JDACT

JDACT, Mary del Priore, Literatura, Narrativa,