sexta-feira, 20 de maio de 2022

As Meninas Escondidas de Cabul Jenny Nordberg. «Azita nota meu silêncio e logo começa a me tranquilizar. Em breve as coisas vão melhorar. Tem certeza. Não há motivo para preocupação»

Cortesia de wikipedia e jdact

Prólogo

«A transição começa aqui. Tiro o lenço de cabeça preto e guardo na mochila. Continuo com o cabelo preso num coque atrás da nuca. Logo estaremos no ar. Endireito as costas e me sento um pouco mais aprumada, deixando que meu corpo ocupe um espaço maior. Não penso na guerra. Penso num sorvete em Dubai. Lotamos as cadeiras pequenas, revestidas de vinil, na sala de embarque do Aeroporto Internacional de Cabul. Meu visto expira daqui a poucas horas. Um grupo especialmente festivo de expatriados britânicos comemora, pela primeira vez em meses, o final do período que viveram atrás de arames farpados e sob vigilância armada. Três agentes humanitárias de jeans e camiseta justa conversam animadas sobre um balneário. Uma malha preta escorregou do ombro de uma delas, deixando à mostra uma parte da pele já bronzeada. Olho aquela exposição física tão pouco habitual para mim. Nos últimos meses, mal tenho visto meu próprio corpo. Estamos no Verão de 2011, e faz mais de um ano que está em curso o êxodo de estrangeiros saindo de Cabul. Apesar de um impulso final, o Afeganistão parece um caso perdido para muitos integrantes das forças armadas e das organizações humanitárias internacionais. Desde que o presidente Obama anunciou que os soldados americanos começariam a se retirar do Afeganistão em 2014, a caravana internacional tem-se apressado em partir. O aeroporto de Cabul é a primeira paragem na rota da liberdade para aqueles consultores, empreiteiros e diplomatas confinados, entediados e quase levados à loucura. Os negociantes da paz e do desenvolvimento internacional procuram novas colocações, onde alguma experiência com a construção da nação ou com a redução da miséria ainda não tenha desandado. Já começam a relembrar os primeiros tempos promissores, quase dez anos atrás, quando o Talibã acabava de ser derrotado e tudo parecia possível. Quando o Afeganistão ia ser renovado e remodelado como uma democracia laica de tipo ocidental.

A luz da tarde inunda a pista do aeroporto. Consigo pegar sinal para o telemóvel ao lado de uma janela e ligo outra vez para o número de Azita. Um estalido, e temos conexão. Ela está atordoada depois de uma reunião com o procurador-geral e algumas outras autoridades. A imprensa também estava lá. Como política, é assim que Azita se sente à vontade. Posso vê-la sorrir enquanto descreve a cena: Me arrumei com elegância. E fui diplomática. Todos tiraram meu retrato. A BBC, a Voz da América e a Tolo TV. Estava com o lenço turquesa, aquele que você viu outro dia. Sabe qual é. E o casaco preto. Faz uma pausa. E maquiagem. Muita maquiagem. Respiro fundo. Sou a jornalista. Ela é o assunto. A regra é não mostrar emoções.

Azita nota meu silêncio e logo começa a me tranquilizar. Em breve as coisas vão melhorar. Tem certeza. Não há motivo para preocupação. Anunciam meu voo. Tenho de ir. Dizemos as coisas de sempre. É só um tchau. Não um adeus. Isso. A gente se vê logo.  Enquanto me levanto, comprimida junto à janela para não perder o sinal, fico fantasiando uma volta. Podia ser a cena final de um filme. Aquele momento de impulso correndo pelo aeroporto para acabar de acertar tudo. Para terminar bem. E se eu passar mais uma tarde no escritório do coronel Hotak, ouvindo um sermão por causa do visto vencido? Um pouco de chá, um carimbo no passaporte e ele me liberta. Enquanto repasso mentalmente a cena, sei que nunca farei isso. E no que isso, meu acto final, resultaria? Entraria correndo na casa de Azita ladeada por soldados americanos? Pela Comissão dos Direitos Humanos do Afeganistão? Ou iria sozinha, com meu canivete e minhas habilidades de negociadora, impelida pela raiva e pela convicção de que basta mais um pequeno esforço para consertar o mundo? Ao passar pelo portão de embarque, as imagens desaparecem. Como sempre. Sigo os outros e, mais uma vez, faço o que todos nós fazemos. Entro no avião e vou embora». In Jenny Nordberg, As Meninas Escondidas de Cabul, 2009, ONG Afghan Women’s Writing Project, 2010, Masha Hamilton, Companhia das Letras, ISBN 978-853-592-696-5.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

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