sábado, 22 de abril de 2023

O Enigma de Compostela. AJ Barros. «Logo que se distanciaram, o detetive não aguentou: Nenhum ladrão jogaria fora essa bolsa sem pegar o dinheiro. Certas intuições não se traduzem facilmente em palavras»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Sua exclamação foi espontânea e demonstrava preocupação: O barrete vermelho! Mas, tecido de cor púrpura!?... O inspector ficou intrigado com aquela reacção. Isso lhe diz alguma coisa? Maurício não respondeu e, com a ponta do cajado, levantou o tecido e o examinou. Material antigo. Trouxe para mais perto do rosto. Cheiro de mofo, corte feito com faca. Não foi tesoura. Os dois o olhavam, intrigados. A senhora tem certeza de que esses objetos não estavam aí quando saiu do carro? Sim, tenho. Nunca tinha visto isso antes. Será que o ladrão estava fugindo e deixou essas coisas?

Não seria muita esperteza da parte dele esconder o resultado de um furto dentro do carro que acabava de assaltar, penso eu. O inspetor deu o seu palpite. De facto, não faz sentido. A dúvida é se ele abriu o vidro para roubar a bolsa e aproveitou para deixar esses objectos ou se, ao contrário, queria desfazer-se deles e aproveitou para levar a bolsa. Nessa hipótese, deve ter cometido outro assalto antes de chegar aqui.

O zelador de Eunate vinha chegando e o inspector pediu um saco plástico para guardar os dois objectos. Ele se comportava como se não tivesse gostado de Maurício ter interrogado a mulher e procurava agora tomar iniciativas. Para Maurício, porém, aquilo não fora um simples roubo. O inspector tentava acalmar a mulher. Assim que a viatura chegar, a senhora poderá formalizar a ocorrência e serão tomadas as providências para encontrar a bolsa com os seus documentos.

Maurício olhou mais uma vez para o saco plástico e depois se aproximou do carro. Uma ideia, que de início achou absurda, começou a tomar vulto e ele se voltou para a comprida alameda que vinha da rodovia até o estacionamento. Esse assassino pode ter feito isso, sim, pode ter feito.

Enquanto o inspector tranquilizava a mulher, ele começou a caminhar pela alameda, examinando os arbustos e as árvores que ladeavam o asfalto. O inspector o observava, inquieto, com receio de ser desprestigiado. A mulher parara de falar e pouco depois eles o viram agachar-se perto de uma árvore e pegar um objecto que de longe parecia uma bolsa.

Lá do outro lado da alameda, despontou uma viatura policial que chegou até o pátio de estacionamento. Maurício começou a voltar, tão devagar quanto tinha ido, e trazia na mão uma bolsa de tamanho médio, de couro, parda, que entregou à mulher. Mas, essa é minha bolsa! Como o senhor sabia que ela estava escondida perto das árvores? O ladrão devia estar de motocicleta. A bolsa é meio grande e seria um estorvo. Imaginei que ele a jogaria em algum lugar próximo daqui. Acredito que não teve tempo para retirar qualquer coisa.

A mulher abriu a bolsa e sorriu aliviada. O dinheiro e os documentos estavam ainda lá. Era uma situação desconcertante para o inspector, que se lembrava do desempenho de Maurício em Roncesvalles e que agora, como num passe de mágica, devolvia os pertences da mulher. Entretanto, ficou agradecido por ele não dizer mais nada na frente dela e dos policiais, que a acompanharam à delegacia, levando o saco plástico contendo os objectos encontrados no carro.

Logo que se distanciaram, o detetive não aguentou: Nenhum ladrão jogaria fora essa bolsa sem pegar o dinheiro. Certas intuições não se traduzem facilmente em palavras. Era preciso cuidado para explicar a esse policial que a mulher tinha razão quando lembrou que aquilo parecia feitiçaria. Um ladrão não deixa no lugar do roubo dois objectos emblemáticos como aquele barrete e o tecido purpúreo.

A lógica não cria um conhecimento novo, como a botânica ou a química. Ela apenas se aproveita de dados já existentes. No caso desse estranho roubo, cheguei à conclusão de que a bolsa não era o objectivo do ladrão, que queria apenas completar o serviço de Roncesvalles. O policial quase caiu ao se virar bruscamente para interrogá-lo». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra, Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.

 Cortesia de GEditorial/JDACT

 

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