domingo, 17 de maio de 2015

A Condessa Cercada. Isabel. Pedro Torres. «Também tu me queres desgraçar? Pois então aqui estou, leva-me e deixa-os em paz, maldito! De tal forma está o conde transtornado que se debruça perigosamente no parapeito da janela, brandindo a espada em círculos»

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«(…) O suor assomava-lhe à pele enquanto os dedos secos e inseguros eram assaltados por tremores incontroláveis. Orientava a cabeça ao tecto procurando ver o céu, e aí repousado o seu filho Bernardo. Mas a vista assustada não passava das grossas traves de madeira que suportavam o telhado, e tamanha era a culpa que o cobria, que desejava que esta por si só fosse capaz de fender os apoios nas extremidades e fazer desabar todo aquele peso sobre o seu próprio corpo... Não havia noite em que não fosse assaltado por aqueles ataques de pânico que ora lhe anulavam as forças e a vontade, ora o enlouqueciam com crises frenéticas de ansiedade, levando-o a percorrer as salas do castelo e até as muralhas, correndo perigosamente sobre pedras irregulares e traiçoeiras. Durante o dia, as distracções dos soldados e do povo mantinham-no sereno, por vezes até conformado; mas com o cair da noite, tal como um nevoeiro cerrado e frio, vinha a solidão, e com ela o círculo de pensamentos tortuosos dos quais não conseguia escapar. O Natal, duas semanas antes, fora o mais triste da sua vida, e chegado o ano novo de mil quinhentos e catorze, era tempo de partir para Portugal e deixar Arzila pela última vez. Triste forma de despedida, concluiu, abandonando-se sobre o seu cadeirão, onde tantas vezes reflectira sobre estratégias e políticas, onde escutara atentamente os conselhos dos seus homens, inconfidências de mercadores amigos e segredos de viajantes, que a troco de um punhado de reis estendiam os seus olhos ao que acontecia nas outras praças, tanto as portuguesas como as mouriscas. Das janelas na parede oposta vinha o som da rebentação das vagas nas rochas e no paredão da muralha, tão forte e assustador que parecia capaz de desfazer as pedras a qualquer instante, e entrar pe1a sala adentro e esmagá-lo entre as paredes ruídas.
Seria pelo melhor, pensou, pegando de forma mecânica na sua espada, esquecida junto ao braço do cadeirão. De nada mais lhe servia, e sem força nem vontade para agarrá-la no punho e erguê-la ao alto, apenas se limitou a deixar a ponta tombar sobre o soalho, e sacar deste pequenas lascas, picando-o distraidamente enquanto permanecia absorto na sua letargia. O Inverno estava a ser particularmente rigoroso naquele ano. Chovera com uma intensidade e persistência das quais não havia memória, a humidade instalara-se como a praga nas casas, na igreja e no castelo; e aquelas manchas pretas, agarradas às pedras das paredes do salão como bivalves nas rochas da praia, cresciam e tomavam a forma de autênticos fantasmas, espíritos antigos e malignos, dançando ao ritmo da luz quebradiça das velas de sebo, alongando-se pelo tecto e descendo por detrás do velho conde, abrindo-se nas suas costas como as asas de uma mariposa, prestes a fechar-se sobre o corpo cansado e gasto. E o vento lá fora agitava-se e batia contra as portadas de madeira das janelas, tão empenadas que mal fechavam, rangendo de forma arrastada e aguda. A cada rajada mais forte estremeciam com tanta violência que pareciam prestes a desfazer-se em pedaços, e naquela agitação o par da janela diante do conde escancarou-se por completo, batendo contra a pedra num grande estrondo que o fez pular com o sobressalto. Fora de si, ergueu-se de repente, solto da modorra de espírito que lhe arrastava os pés, e dirigiu-se de espada em punho até à janela por onde agora até pequenas gotículas de mar salgado entravam, esvoaçantes e agrestes. O coração voltava a acelerar-lhe no peito e as pupilas dilatavam-se-lhe, enquanto se apoiava no parapeito, perscrutando a imensidão do mar escuro e medonho. Apenas a espuma branca da rebentação se via, algures nas rochas, lá em baixo na praia. Tudo o resto era breu, e voltado contra aquele cenário de tormenta, perdido em mais um acesso de loucura, o conde Vasco erguia a espada ao céu e às nuvens pretas, de onde caía agora uma chuva torrencial, sentindo a água escorrer pelas faces, encharcando-lhe os cabelos e as barbas ao mesmo tempo que praguejava contra os elementos da natureza.
Mas já não era a morte do filho Bernardo aquilo que o levava a desejar acometer contra a tempestade. Temendo o velho dito que uma desgraça nunca vem só, era agora o medo de uma outra tragédia, aquilo que o levava a querer desfigurar as nuvens e as vagas poderosas a golpe de espada. Leva-me antes a mim, se é a morte que te satisfaz!, gritava para o mar, com um vozeirão rouco. Também tu me queres desgraçar? Pois então aqui estou, leva-me e deixa-os em paz, maldito! De tal forma está o conde transtornado que se debruça perigosamente no parapeito da janela, brandindo a espada em círculos. E insiste naquele combate inútil quando de súbito lhe escorregam os pés no chão onde mal se apoiava e desequilibra-se, deixando cair a espada pela parede do castelo abaixo, a qual soltou um som metálico ao bater nas rochas, vinte metros abaixo, antes de desaparecer por completo no vaivém das ondas. Ainda se debruça mais no parapeito e procura, lá baixo, algum sinal da lâmina de aço, mas de nada lhe vale. Num repente tresloucado quis então saltar para as rochas, cravando os dedos na pedra para se impulsionar, mas uma rajada súbita e ascendente tomou-o mesmo pelo peito, e como está sem os pés apoiados no chão e apenas com a barriga sobre o parapeito, aquele empurrão fá-lo regressar para dentro, caindo sentado no chão como um velho tonto e ridículo. Depois vem outra rajada que sacode as portadas e as bate com tamanho estrondo que as cerra de vez, como se as tivesse desempenado». In Pedro L. Torres, Isabel, A Condessa Cercada, Saída de Emergência, 2014, ISBN 978-989-637-660-4.

Cortesia de SEmergência/JDACT