segunda-feira, 25 de maio de 2015

As Extraordinárias Aventuras da Justiça Portuguesa. Sofia Pinto Coelho. «Como vamos lidar com os funcionários? Devemos ser austeros para nos impormos? Se tivermos conversas informais e dissermos piadas, estamos a dar o flanco? Uma coisa é certa: os funcionários têm um grande controlo sobre o nosso trabalho…»

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A primeira vez
«(…) Ler o relato da primeira vez, de um juiz pode ser pungente. Numa crónica, publicada num jornal associativo, uma jovem juíza, de origem minhota, relatava como decorrera a sua colocação no tribunal de Moura, em pleno Alentejo. Tanto me aparece o guarda-florestal que vai prestar juramento, que eu não presto enquanto não ler o artigo do Decreto-Lei de mil novecentos e troca o passo, a fim de perceber, mais ou menos, qual será o meu papel, como os mais inimagináveis incidentes jurídicos, suscitados por advogados com nomes pomposos, ou pertencentes a afamadas sociedades, com os nomes dos sócios a ocupar metade das páginas. Com vinte e poucos anos e sem nenhuma experiência profissional, os jovens magistrados vêem-se, de repente, com a vida dos outros diante de si. A comarca caracteriza-se sobretudo por execuções, regulações do poder paternal, divórcios e inventários. Muitas vezes sem ter passado por um estágio decente, de um dia para o outro, passam a comandar um tribunal. A comandar, salvo seja. Na prática, quem manda nos tribunais são os funcionários judiciais. Eles é que lá estão há anos, são mais velhos e alguns até sabem de leis, enquanto os juízes, esses, vão e vêm, saltitando de comarca em comarca. Foi isso mesmo que a jovem magistrada descobriu à sua própria custa.
Como vamos lidar com os funcionários? Devemos ser austeros para nos impormos? Se tivermos conversas informais e dissermos piadas, estamos a dar o flanco? Uma coisa é certa: os funcionários têm um grande controlo sobre o nosso trabalho, desde logo face ao número de processos que nos concluem diariamente. Tradução: os funcionários, se quiserem, conseguem lixar um juiz. Há outro aspecto, e importante, que a juíza não mencionou: legalmente, os juízes não têm poder disciplinar sobre os seus funcionários, sejam eles desleixados ou incompetentes. A relação entre uns e outros chega a tornar-se caricata, como sucedeu, há tempos, com o problema dos passes sociais. Os funcionários judiciais, alegando que não eram criados, recusaram-se a ir à bilheteira da Carris carregar os passes sociais de que os magistrados beneficiam por terem direito a utilizar gratuitamente os transportes públicos. Só lá foram com uma ordem de serviço.
O que esta juíza também desconhecia é que os tribunais, além das paredes, pouco mais têm. Há uma única linha telefónica. O que quer dizer que quando alguém está ao telefone, mais ninguém no tribunal pode fazer chamadas. O ar condicionado é outro luxo a que este tribunal não tem direito, o que não se compreende face às amplitudes térmicas a que estamos sujeitos, sendo certo que o quadro da electricidade não aguenta com certo número de aquecedores. Esta juíza conseguiu, apesar de tudo, olhar o que a rodeava. Captou-me a atenção o facto de as pessoas se juntarem sem que haja casamento, em maior número que no Norte. Por outro lado, noto que há menos ambição e mais indolência que no Norte. Sendo certo que há menos oportunidades de emprego, julgo haver mais pessoas que não trabalham porque não querem e podendo viver de um subsídio, ainda que mal, preferem-no.

O juiz MacDonalds
Quem ler a crónica que uma juíza publicou num jornal sindical apercebe-se de que, afinal de contas, o ritmo de trabalho dos juízes é esmagador. Espera-se rapidez, reflexão, total actualização, interiorização automática das alterações legislativas diárias, milagres na marcação dos julgamentos, o domínio dos vários processados, na sua maioria apelidados de simplificados, mas que de simples só têm o nome. À sua espera têm o expediente, as diligências de menores, as audiências preliminares, os julgamentos, as conferências de interessados, as falências, as expropriações, os despachos de fundo e tudo, tudo, tudo... O texto prossegue depois, em tom sarcástico. O quê?! Não está a conseguir? Já deixou de passear, de ler (outros livros que não jurídicos), de ir ao cinema, ao teatro, de fazer desporto já retirou grande parte dos fins de semana aos seus filhos, já foi ao psiquiatra e já anda a tomar antidepressivos e mesmo assim não está a conseguir? Talvez..., não esteja a dar o melhor de si próprio. Lembra-se do tempo em que se valorizava um juiz por reflectir, ponderar, estudar? Esqueça. Está totalmente fora de moda. A ideia é que deve ser uma espécie de McDonalds da Justiça: rápido e em massa. Resta acrescentar que se em Lisboa, ou no Porto, os juízes têm 4000 processos às costas, no resto do país, os tribunais andam às moscas, como sucede em Vinhais ou nas Ilhas, onde têm 300. As estatísticas, aliás, revelam que o número de magistrados em Portugal é mais do que suficiente. No Supremo Tribunal de Justiça até sobram: são 60, mais do que no Supremo Tribunal espanhol, que tem apenas 40 conselheiros, por onde passam o quádruplo dos processos». In Sofia Pinto Coelho, As Extraordinárias Aventuras da Justiça Portuguesa, Histórias insólidas de juízes, advogados, procuradores e de todos nós, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-626-186-3.

Cortesia de ELivros/JDACT