terça-feira, 19 de maio de 2015

A Conquista de Lisboa. 1578-1583. Violência Militar. Comunidade Política. Rafael Valladares. «Os parâmetros demográficos, económicos, políticos e emocionais que nós, historiadores, consideramos estruturalmente característicos para uma comunidade do Antigo Regime, haviam sofrido profundas alterações»

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Violência
A escolha de Alba
«(…) O essencial dos acordos ficou estabelecido em 1579. Em Fevereiro, o hábil mediador que era Moura resumiu a táctica da sua agenda para sentar o Prudente no trono de Portugal: que apontem, no geral e no particular, aquilo que convém a cada um, após o que lhes seria dado a conhecer a predisposição de Filipe II para o conceder, e com uns se hão-de ir conquistando os outros. O método já se revelara frutuoso com alguns nobres e mercadores, embora com plebeus e obstinados hão-de surgir dificuldades. O dardo de Moura acertara no centro do alvo ao conseguir o seu principal desígnio: a desarticulação (e não necessariamente a ruptura) da comunidade política em que operava. A ideia de desarticular na ordem corporativa do século XVI ia para além da mera conquista de vontades. O curto-circuito inter-estratos era tão importante como o intra-estratos, e certamente até mais que o simples facto de cativar os ricos ou os privilegiados, pois, em função de todas as pressões, a comunidade, na sua qualidade de república dos vassalos, teria finalmente optado por reagir com uma frente solidária às pretensões de Filipe II, e a entronização deste em Portugal dificilmente se teria concretizado. Visto deste modo, o problema dos plebeus e obstinados, passava a ser responsabilidade da invasão militar, o que demonstra a confiança que já nessa altura existia pelo eficaz uso da força sobre um objectivo bem identificado e separado do resto. Porém, este Moura inteligente e bom conhecedor do seu reino de origem não era, no entanto, infalível e nem sempre convincente. Durante todo o ano de 1579, Filipe II conservou ainda a esperança, não partilhada pelo seu enviado a Lisboa, de que o sector popular acabaria por compreender as vantagens que lhe proporcionava a incorporação no seu império. Descendo-se ao particular, vê-se claramente, garantia o rei ao seu novo embaixador em Portugal, o duque de Osuna, que os três estados, cada um no seu grau, se alargará pela amplidão destes reinos: o clero com dignidades e benefícios eclesiásticos; a nobreza e a gente mediana com ocupações e cargos em todos eles; o povo com as suas actividades e a navegação para as minhas Índias Ocidentais, que grande interesse terá para ele. Mais adiante, o monarca ampliava o rol dos benefícios que, embora dirigidos a todo o reino, alegrariam certamente mais a sua arraia-miúda: a supressão dos portos secos com Castela, redução dos impostos marítimos (de 20 para 10 por cento), exportação de pão castelhano para um reino estruturalmente deficitário em cereal como o português e, como medida mais imediata, o desembolso de cem mil ducados para resgatar os cativos lusos que continuavam à espera em Marrocos, desde a campanha do ano anterior.
A crer no mesmo rei, em Outubro de 1579 a factura pelos prisioneiros de África elevara-se aos 400 mil ducados, montante deveras astronómico e que procurava convencer todos que Filipe II actuara não já como um príncipe amigo de Portugal, mas como seu futuro patrono de vassalos. Em condições normais, estas ofertas teriam produzido o efeito desejado de arrancar a aquiescência popular para com a nova dinastia. Contudo, o Portugal dos últimos Avis, e em especial Lisboa, não atravessava um período de normalidade. Os parâmetros demográficos, económicos, políticos e emocionais que nós, historiadores, consideramos estruturalmente característicos para uma comunidade do Antigo Regime, haviam sofrido profundas alterações. Em contrapartida, os ministros de Filipe II e, ao que parece, até boa parte dos castelhanos, encontravam-se precisamente na dimensão oposta, confiantes e arrogantes relativamente ao desenlace da operação. Este embate propiciou que se formasse entre os austracistas uma incapacidade evidente para compreender certas atitudes dos portugueses, como a suposta fuga para a frente de António, prior do Crato, ao proclamar-se rei ou a resistência popular a Filipe II. Acerca do primeiro, o próprio Moura, a quem caberia manifestar maior perspicácia, opinou que se tratava de algo que não acreditava ter fundamento, mas que o fez para se vender mais caro. Cristóvão procurava desacreditar o prior do Crato como um vulgar chantagista para mitigar o seu fracasso como negociador político, mas este juízo de valor também ignorava a energia potencial do apoio do povo ao bastardo (legalizado), algo de que este, pelo contrário, tinha consciência. Nesta matéria, um castelhano que em Badajoz observava a concentração de tropas que ali decorria na Primavera de 1580 manifestava o seu espanto por com tudo isto, se aparecer aqui algum português com uma capa de trapos, será louco a ponto de dizer que isto não é nada, e dizem [os portugueses] que se tiver de haver guerra, nem o mundo inteiro chegava para eles. Como esta mesma testemunha declarara meses antes, em Portugal não têm comida para um dia nem munições: a necessidade há-de trazê-los para o que muito lhes custa, que com a paciência não os conseguem levar os senhores portugueses». In Rafael Valladares, A Conquista de Lisboa, 1578-1583, Violência Militar e Comunidade Política em Portugal, Texto Editores, Alfragide, 2010, ISBN 978-972-47-4111-6.

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