domingo, 31 de maio de 2015

Vila Velha (1914-1945) no 31. Café República. Álvaro Guerra. «… e semeava o seu apocalipse: não calcula, Mariana. Aquilo, volta não vira, rebentam os tiros e as bombas. E muda-se de ministro como de camisa. A propósito, o seu cunhado Aníbal sempre vem agora de férias?»

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«(…) Assim intuíam vagamente os palestrantes do Café República, o Teófilo, notário, o farmacêutico Soares e o único industrial da vila àquela data, Josué Silva Castro, herdeiro do velho Saul, a quem se juntava, condicionada pelas solicitações do serviço, a aquiescência apaziguadora e amiúde contraditória do galego Manuel Maria, dono do café e o mais moderno dos cidadãos adoptivos de Vila Velha. Já no ano passado, quando fui à Suíça ver o meu falecido irmão David, me pareceu que essa Europa anda meio maluca..., interveio Josué Castro, o único vila-velhense verdadeiramente viajado, com excepção de António Lencastre, frequentador certo da Feira de Sevilha. Em Bordéus, tomaram-me por um anarquista italiano autor de um atentado em Marselha e passei um mau bocado na gendarmaria para conseguir explicar que era o Castro de Vila Velha. E, afinal, como é que você viu o imperador Francisco José, ó Castro?, indagou o farmacêutico, fascinado. Passou de carruagem, escoltado pelos granadeiros. Estava eu diante do Parlamento admirando a estátua de Palas, e vinha ele dos lados do Castelo de Schönbrunn. Usa suíças iguaizinhas às do António Lencastre. Talvez mais brancas... Uma sombra de despeito gelou o olhar do Teófilo, que jamais conseguira dominar o complexo de inferioridade causado pela longa peregrinação do Josué por Paris, Genebra, Viena, Berlim, o mundo. E o Luís Soares, respeitado proprietário da Pharmácia Asclepius, contemplando gravemente o enlutado Castro: coitado do David. Um rapaz tão inteligente e brilhante... Infelizmente ainda não se inventou o remédio radical para a tísica. Galopante, amigo Soares, galopante. Nem os especialistas, nem as montanhas suíças lhe valeram. E olhe que não poupámos nos contos de réis para lhe salvar a vida. Ofegante, o Fonseca estafeta, melena desgrenhada, carregado de embrulhos, gritou à porta do café: temos outra bernarda para breve, com tropa na rua! No Rossio, ferviam os boatos e em cada esquina havia uma conspiração. E o Teófilo, dobrando o jornal: vê-se logo que já chegou o comboio de Lisboa. E alisou as guias do bigode frisado.
Ermelinda Pacheco, viúva rotunda do juiz Laurentino Pacheco, avançou a alentada figura pela álea do roseiral da Casa Grande, acenando com o lenço de renda a Mariana Castro, que a esperava na soleira; ao lado, a criada de peitilho e crista, na mão, o regador de zinco. Mal terminados os cumprimentos e as queixas pelos tormentos do calor, ainda não perfeitamente acomodadas banhas e refegos no canapé de palhinha da sala de estar, Ermelinda desabafou: devia haver uma lei contra as revoluções!
Chegara na véspera de Lisboa onde fora visitar uma filha casada com um tenente da Guarda Republicana. Vira cair dois ministérios, e o genro, de equipamento completo, a pendurar o sabre à cinta, partindo à conquista da ordem da pátria em perigo. Vinha assustada. Levava a mão ao cimo do espartilho de barbas de baleia a sobrar ligeiramente do vestido preto e branco, luto aliviado, suspirava e semeava o seu apocalipse: não calcula, Mariana. Aquilo, volta não vira, rebentam os tiros e as bombas. E muda-se de ministro como de camisa. A propósito, o seu cunhado Aníbal sempre vem agora de férias?
Mariana fez-se desentendida. A chegada do cunhado de mais uma missão nas colónias interessava, pelas mais diversas razões, numerosos cidadãos de Vila Velha. Ao toque da campainha de prata acorreu a criada. Jacinta, serve-nos o chá. E não te esqueças daqueles bolinhos de noz que fiz hoje de manhã. Ora, dizia a Ermelinda que por Lisboa vai o diabo à solta... Enquanto Ermelinda Pacheco, contradizendo a sua pesada silhueta de matrona, passava ligeira e habilmente à moda das capelines com flores da Casa Silveira da Rua do Carmo, Mariana pensava nas voltas que a vida dá sem que as criaturas precisem de sair do mesmo lugar. Referia-se o pensamento a si própria, sem poder explicar porque lhe ocorria, a não ser pela defesa instintiva da tagarelice de Ermelinda, uma chata. Ali sentada entre a mobília arte nova da sala de estar de um casarão de vinte quartos, cave, sótão e jardim, obra mandada construir pelo falecido Saul Castro, seu sogro, no ano da graça de 1902,a menos de duzentos metros da Pensão Pereira, casa no fundo da qual nascera e se criara, filha única de Francisco Pereira e de Matilde, que ela perdera ainda em menina, no tempo das olhadelas furtivas ao balcão do café-restaurante de onde o pai a queria longe mas que sempre a atraía, sobretudo depois de vislumbrar o bigode preto do mais velho dos meninos Castro, de seu nome Josué, esguio como um vime, o longo pescoço emergindo do colarinho de goma fechado com botão de ouro e plastron, como o caule de uma flor saindo de um vaso». In Álvaro Guerra, Café República, folhetim do mundo vivido em Vila Velha (1914-1945), Edições O Jornal, Lisboa, 1982/1984, Depósito Legal 5036.

Cortesia de O Jornal/JDACT