segunda-feira, 11 de maio de 2015

Tambores de Outono. Diana Gabaldon. «O capitão da guarda tinha o rosto avermelhado pelo sol e a fúria; brilhava entre o branco de sua peruca e o metal da sua garganta. Gritou uma ordem enquanto os tambores continuavam o seu sombrio rufo…»

jdact e wikipedia

Maravilhoso Novo Mundo. Charleston, Junho de 1767
«Escutei os tambores muito antes de poder vê-los. Os golpes ressoavam na boca do meu estômago como se eu também estivesse oca. As cabeças voltavam-se e a gente ficava em silêncio olhando a rua East Bay, que se estendia da estrutura em construção da nova alfândega até aos jardins do White Point. O dia era caloroso inclusive para Charleston no mês de Junho. Os melhores sitios estavam no dique, onde o ar circulava, mas aqui em baixo era como cozer-se vivo. Naquele momento, era morosamente consciente dos pescoços. Coloquei uma mão no meu e o percorri com os dedos. O pulso de minhas artérias carótidas pulsava ao mesmo ritmo que os tambores e, ao respirar, o ar húmido e quente obstruía minha garganta, afogando-me. Baixei a mão e respirei profundamente. Foi um engano. O homem que tinha em frente não se banhou em meses. Também havia vários meninos, estirando-se boquiabertos para olhar para a rua enquanto os pais, ansiosos, chamavam-nos. A menina mais próxima a mim tinha o pescoço como a parte branca de um caule de erva, elástico e suculento. Produziu-se um estremecimento entre a multidão quando a procissão da forca apareceu ao final da rua. Os tambores soaram mais forte. Onde está?, murmurou Fergus, esticando o pescoço para poder ver. Sabia que teria que ter ido com ele! Tem que estar aqui. Quis-me pôr nas pontas dos pés, mas não me pareceu digno para o momento. Segui procurando em redor. Sempre podia localizar ao Jamie entre a multidão; a sua cabeça e ombros se sobressaíam por cima da maioria dos homens e seu cabelo reflectia a luz como um brilho de ouro avermelhado. Entretanto, não havia rasto dele.
Primeiro apareceram as bandeiras, ondulando sobre as cabeças da agitada multidão, com as insígnias de Grã-Bretanha, da Real Colónia da Carolina do Sul e o escudo da família do lorde governador da colónia. Logo chegaram os tambores, partindo de dois em dois e alternando um golpe forte com outro mais amortecido. Era uma marcha lenta, sombria e inexorável. Uma marcha fúnebre, assim chamavam àquela cadência em particular, muito adequada para as circunstâncias. O resto dos ruídos ficavam apagados pelo som dos tambores. A seguir partia o pelotão de casacas vermelhas, no meio dos quais se encontravam os prisioneiros. Eram três, com as mãos atadas por diante e unidos por uma cadeia que unia os pescoços com argolas de ferro. Esse é Gavin Hayes? Parece doente, murmurei ao Fergus. Está bêbado. A voz suave vinha das minhas costas; dei a volta rapidamente e descobri a Jamie com os olhos cravados na deprimente procissão. A falta de equilíbrio do homenzinho entorpecia o progresso da marcha; os seus tropeções obrigavam aos outros dois homens encadeados com ele a ziguezaguear para não cair. A impressão que davam era de três bêbados voltando para a taverna. Foste tu?, perguntei em voz baixa para não chamar a atenção, embora poderia ter gritado e agitado os braços pois ninguém tinha olhos mais que para a cena que se desenvolvia ante nós.
Pediu-me isso,respondeu. E foi o melhor que pude fazer por ele. Brandy ou whisky?, perguntou Fergus. O homem é escocês, pequeno Fergus. A voz do Jamie era tão tranquila como a expressão do seu rosto, mas notei a tensão que ocultava. Uma eleição muito sábia. Com sorte, nem sequer se dará conta quando o enforcarem, murmurou Fergus. O capitão da guarda tinha o rosto avermelhado pelo sol e a fúria; brilhava entre o branco de sua peruca e o metal da sua garganta. Gritou uma ordem enquanto os tambores continuavam o seu sombrio rufo, e um soldado apressou-se a desencadear os prisioneiros. Hayes foi levantado sem cerimónia alguma por dois soldados e a procissão continuou mais ordenada. Quando chegaram à forca, um carro com uma mula debaixo dos ramos de um grande carvalho. Ninguém ria. Não precisa olhar, sussurrou Jamie. Retorna ao carro. Seu olhar estava cravado no Hayes, que se retorcia sujeito pelos soldados enquanto olhava confundido. Quão último desejava era olhar. Mas tampouco ia deixar que Jamie passasse sozinho por tudo aquilo. Estava ali por causa do Gavin Hayes e eu estava por ele. Toquei-lhe a mão. Me vou ficar.
Jamie ergueu-se, endireitando os ombros. Deu um passo adiante para ser visível no meio da multidão. Se Hayes ainda estava sóbrio para ver algo, quão último veria neste mundo seria o rosto de um amigo. Podia ver, pois enquanto o subiam para o carro torcia o pescoço com desespero. Gabhainn! A charaid!, gritou de repente Jamie. Os olhos do Hayes o encontraram e deixou de lutar. Então os tambores começaram outra vez, com rufos parecidos. O verdugo passou o laço pela cabeça calva e ajustou o nó, colocando-o debaixo da orelha. O capitão da guarda permaneceu em sentido, com o sabre levantado. De repente, o homem condenado endireitou-se. Fixou os olhos no Jamie e abriu a boca como se fosse para falar. A espada brilhou com o sol da manhã e os tambores detiveram-se com um rufo final. Olhei para Jamie; tinha o rosto pálido e os olhos muito abertos. O corpo pendurava oscilando ligeiramente como um prumo. Não tinha conhecido Gavin Hayes e não sentia dor pessoal pela sua morte, mas alegrava-me que tivesse sido rápida». In Diana Gabaldon, Tambores de Outono, 1996, Editora Rocco, 2008, ISBN 978-853-252-373-0.

Cortesia ERocco/JDACT