quinta-feira, 21 de maio de 2015

Jou Pu Tuan. Li Yii. «Chegou o momento crítico em que as tranças esticadas, emblema da meninice, se desmancham para dar lugar a madeixas lisas. O menino transformara-se num jovem. Não tardou a chegar a altura do primeiro exame…»

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«A nossa história situa-se nos tempos da dinastia Mongol (1280-1368), no reinado de Chih-ho, harmonia alcançada, 1328). Nessa altura vivia em Kua-ts'ang-shan, a Montanha vestida de azul, um dhûta, ou seja um monge budista, cujo templo era chamado Ku-feng, Cume Deserto. Nascera no condado de Chuchow, na província de Chekiang, e, na sua mocidade, fora um aluno brilhante da teoria política de Confúcio, destinado a vir ocupar um alto posto no governo. As suas tendências, porém, levavam-no a inclinar-se mais para a meditação e para a reflexão filosófica das origens e da essência das coisas do que para a actividade prática de um governo oficial. Quando ainda andava de fraldas costumava murmurar uns sons incompreensíveis que se assemelhavam muito à lenga-lenga de um estudante a decorar textos clássicos. Isto deixava os pais admirados. Um dia veio bater-lhes à porta um mendigo que era monge e andava a pedir esmola para uma obra piedosa. A criada trazia o menino ao colo quando veio abrir. O monge, ao ouvir a criança balbuciar num tom entre o riso e o choro, encheu-se de espanto e exclamou: mas o que ele diz são máximas tiradas do célebre Leng-yen-ching, Sutra da Severidade Angular!, traduzido para chinês em 1312. É isso que o menino está a recitar. Não há dúvida de que reincarnou nele a alma de um antigo santo, o qual fala pela sua boca. E dirigiu-se aos pais da criança, pedindo para lhes confiarem o filho; despertaria nele a vocação religiosa e torná-lo-ia seu discípulo. Os pais, que eram adeptos convictos e esclarecidos de Confúcio, consideraram aquelas palavras como uma superstição tola e recusaram, indignados. O pai começou muito cedo a ensinar-lhe a escrever e a ler os livros clássicos. O rapazinho dava mostras de uma compreensão rápida e extraordinária; bastava ler uma única vez um texto para este lhe ficar gravado na memória a ponto de o recitar de cor. Contudo, caso estranho, logo de princípio a sua tendência ia para os escritos budistas. Muitas vezes o pai o surpreendeu a interromper os estudos para se dedicar secretamente à leitura dos sutras budistas. O pai e a mãe repreendiam-no severamente, chegando mesmo a castigá-lo com varadas, sem que ele renunciasse a esta secreta ocupação.
Chegou o momento crítico em que as tranças esticadas, emblema da meninice, se desmancham para dar lugar a madeixas lisas. O menino transformara-se num jovem. Não tardou a chegar a altura do primeiro exame e o pai mandou-o para a academia da província a fim de se preparar. Aí distinguiu-se de tal forma que o director o nomeou seu assistente e monitor junto dos outros alunos. No entanto o rapaz mostrava-se pouco interessado em passar nos exames; não se sentia atraído por um lugar de carreira tradicional no governo nem pelos êxitos mundanos que os pais lhe prometiam. Então, pouco tempo depois de ter feito o primeiro exame, os pais morreram e ele encontrou-se livre para seguir a sua inclinação. Observou, claro está, os três anos de luto tradicionais, como competia a um filho dedicado, mas depois pôs em prática o projecto, há muito amadurecido, de renunciar, ao mundo. Distribuiu sem hesitar a herança, a sua casa, as suas terras e dez mil moedas de prata, pelos membros da família. Fez com as suas próprias mãos um saco de coiro, reuniu os escassos objectos indispensáveis a um eremita, um cajado, uma esteira para orar, alguns pergaminho e sutras, mandou rapar o cabelo e dirigiu-se às montanhas para ali viver como eremita». In Li Yii, Jou Pu Tuan, Círculo de Leitores, Tradução de Maria Isabel Braga, Novembro de 1982.

Cortesia de CLeitores/JDACT