quinta-feira, 14 de maio de 2015

A Lebre. Álvaro Guerra. «A cicatriz desce do sobrolho até ao maxilar, levemente sinuosa, vertical, e o dedo fino da mulher, tão nova, tão nova, percorre-o como se evocasse um outro tempo em que não eram frequentes os cuidados e as minúcias…»

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«Era belo, como quem guardava muito de uma infância não pura mas indefesa, beleza ainda próxima do sono da criança, de costas, cabelos negros espalhados na almofada branca, braços abertos em ângulo recto, mãos fechadas, ainda indecifrável beleza de começo e de separação. Galopava no cavalo ruço impelido pelo bico das suas esporas de cavaleiro com lágrimas nos olhos chicoteados pelo vento frio, sozinho na charneca, atrás dos cães, galgos puros, só nervos e instinto de velocidade, de vitória, saltando moitas, rasando os troncos velhos de sobreiros e azinheiras, sozinho, abria uma fenda, um golpe na névoa do Outono castanho, amarelo e verde, marcando, macerando a terra mole na sua passagem vertiginosa, primeiro as patas leves dos galgos, minúsculas almofadas de cinco unhas, depois, as marcas fundas dos cascos do cavalo ruço, rasgões em meia lua no chão, lama projectada, raivoso galope de seus dezoito anos, fuga, ultrapassagem, encontro, dúvida, dádiva, perseguição, perseguição de um rasto, uma lebre, um veado, um dragão, um diabo, joelhos apertados com força contra as costelas do cavalo ruço, suor branco, azedo e espumoso, crinas batendo na sua cara, os ramos da azinheira pertíssimo, ele a debruçar-se sobre a cabeça do cavalo, a abraçar-lhe o pescoço tenso, esticado para a frente, o choque verde, a queda, um sabor pastoso, doce, enjoativo, o esquecimento e, depois, muito depois, o frio da terra, da lama no rosto, o vapor libertando-se dos corpos dos galgos de pelo molhado, o macho tinha um extenso rasgão no flanco direito e gania suavemente enquanto a fêmea lhe lambia o sangue que começava a coagular, nuvenzinhas mornas saindo de suas narinas.
A cicatriz desce do sobrolho até ao maxilar, levemente sinuosa, vertical, e o dedo fino da mulher, tão nova, tão nova, percorre-o como se evocasse um outro tempo em que não eram frequentes os cuidados e as minúcias de bem coser uma ferida, outro tempo dele, demarcado com rigores de violências e caprichos simples, nada de remorsos e angústias que não pudessem ser resgatados ao confessionário, uma vez por ano. Um dedo de mulher, tão nova, demora-se naquela ex-ferida até agora tida como sinal de macho, recordação, invocação de juventude que, com surpresa, pela primeira vez magoa, severa, implacável. Aproxima-se do seu este corpo nu, de muito nervo e frescura que, subitamente, em frio se transforma. E ele começa quando eu tinha dezoito anos..., para desistir, logo. Jamais será capaz de explicar, de saber, reconhecer, admitir, aceitar que, agora, vinte e nove anos depois, a memória o atraiçoe por fidelidade, tão estranhamente clara a dúvida, a dádiva. O quê? Nada, nada. Na Primavera levo-te a Paris. Queres? Inês sorri, abrindo ligeiríssimas rugas, estrias de desgosto, a cada canto da boca, claro que quero. Mas não achas que vai ser muito complicado? O dedo vem da cicatriz aos lábios dele e, depois, o beijo. Nada existe para esquecer, tudo vem depois». In Álvaro Guerra, A Lebre, Prelo Editora, Lisboa, 1970.

Cortesia PreloE/JDACT