sexta-feira, 22 de maio de 2015

Teorema. Pier Paolo Pasolini. «Permeado de excertos poéticos, faz a descrição impiedosa dos comportamentos e conflitos que ocorrem no seio de uma família burguesa num momento de crise. Representa ao mesmo tempo, uma parábola…»

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Dados
«Os primeiros dados desta nossa história consistem, muito modestamente, na descrição de uma vida familiar. Trata-se de uma família da baixa burguesia: baixa burguesia no sentido ideológico, não no sentido económico. Trata-se, de facto, de pessoas muito ricas, que vivem em Milão. Cremos que não será difícil imaginar como vivem estas pessoas; como se comportam nas suas relações com o seu ambiente (que é justamente o da burguesia industrial abastada), como agem no seu círculo familiar, e assim por diante. Acreditamos também que não será difícil (permitindo-nos assim evitar determinados pormenores pouco inovadores) imaginar, uma a uma, estas pessoas: de facto não se trata de modo algum, de pessoas excepcionais, mas de pessoas mais ou menos medianas. Tocam os sinos do meio-dia. São os sinos da vizinha Lainate, ou de Arese, ainda mais perto. Ao toque dos sinos, misturam-se os gritos, discretos e quase doces, das sirenes. Uma fábrica ocupa totalmente o horizonte (muito incerto, devido à leve neblina que nem a luz do meio-dia consegue dispersar) com as suas muralhas de um verde tenro como o azul claro do céu. É uma época do ano indefinida (poderia ser Primavera, ou o início de Outono: ou as duas juntas, porque esta nossa história não tem uma sucessão cronológica), e os choupos que rodeiam em longas filas a imensa clareira onde emergiu a fábrica há apenas alguns meses ou anos, estão despidos, ou somente a rebentar (ou então têm as folhas secas).
Anunciando o meio-dia, os operários começam a sair da fábrica, e as filas dos carros estacionados, que são às centenas, começam a ganhar vida... Neste ambiente, com este pano de fundo, apresenta-se a primeira personagem da nossa narração. Da entrada principal da fábrica, entre a saudação quase militar dos guardas, sai, na realidade, lentamente, um Mercedes: no interior, com um rosto doce e preocupado, um pouco apagado, de homem que durante toda a vida não se preocupou senão com os negócios e, talvez de vez em quando, com o desporto, está o dono, ou, pelo menos, o principal acionista, daquela fábrica. A sua idade situar-se-á entre os quarenta e os cinquenta anos: mas é muito jovial (a face está bronzeada e os cabelos são apenas ligeiramente grisalhos, o corpo é ainda ágil e musculoso, como o de quem praticou desporto na juventude, e continua a fazê-lo. O seu olhar está perdido no vazio, entre preocupado, aborrecido ou simplesmente inexpressivo: por isso, indecifrável. A entrada e saída assim solenemente da fábrica, da qual é o dono, não é para ele senão uma rotina. Em suma, tem a aparência de um homem profundamente imerso na sua vida: o facto de ser um homem importante do qual dependem os destinos de tantos outros homens, torna-o, como acontece, inatingível, alheio, misterioso. Mas trata-se de um mistério, por assim dizer, pobre em espessura e tonalidades. O seu carro deixa para trás a fábrica, longa como o horizonte, e quase suspensa no céu, e toma a estrada, acabada de construir entre os velhos choupais, que vai em direcção a Milão». In Pier Paolo Pasolini, Teorema, 1968, 1991, 1994, Quasi Edições, tradução de Ana Tanque, biblioteca Metamorfose, 2005, ISBN 989-552-105-7.

Cortesia de QuasiEdições/JDACT