quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

A metáfora em Eugénio de Andrade. Carlos Sousa. «Metáfora, o lugar da Mãe, teorias, conceitos, métodos, chuva sobre o rosto, o tempo, o nome da terra, das águas, a transparência do mundo, […] o coração habitado, o rosto precário, a harmonia do mundo»

Cortesia de wikipedia e jdact

Temas e motivos poéticos
«Importância da linguagem enquanto instrumento  de trabalho: poesia musica verbal; a melodia metafórica; o ritmo; regularidades de ordem silábica, prosódia, de rima, frásica e into-nacional, incidência nas ligações corpo-escrita-terra (ou outros elementos primordiais da natureza); os quatro elementos míticos (fogo, água, ar, terra) metamorfoseados; a natureza, as flores; busca da pureza essencial».

A metáfora em Eugénio de Andrade
A poesia de Eugénio de Andrade é marcada por um lirismo puro, carregado de metáforas luminosas que harmonizam o amor e os quatro elementos primordiais: água, terra, ar, fogo2. Assim: Fogo: verão; Água: fonte, rio, mar; Ar: vento, música, poesia. Terra: ruralidade, casa, mãe, corpo, criança, pastor; reino vegetal (frutos, rosa...); reino animal. Casa, lugar da mãe e do corpo. A habitabilidade prediz o preenchimento, a totalidade. A casa desabitada (porta fechada, casa na chuva...), sinal da ausência da mãe, é lugar de desprotecção e abandono, e, portanto, metáfora do vazio. Poesia do Corpo: na minha poesia o corpo insurge-se, diz coisas despropositadas, põe-se a blasfemar, chegando a pretender-se metáfora do universo (Rosto Precário, 1979). Na poesia de Eugénio a importância do corpo tornou-se um dos mais divulgados lugares comuns do ponto de vista da recepção da sua obra. Mãe, a mãe surge como mediadora face ao desejo (a mãe deseja o desejo para o filho) e à poesia, ao acesso à poesia. Repare-se também na presença de certos aspectos da mitologia cristã ligados à mãe, nomeadamente na sua sacralização, essa fabulosa figura do sacrifício, nas palavras do poeta, que lhe deu o conhecimento da poesia. Encontram-se diversas marcas que podem convalidar esta leitura (das rosas brancas, enquanto metáfora da pureza, à ressurreição e à intercessão) e que nos podem levar a falar de uma revisitação mítica da Imaculada Conceição, veja-se, por exemplo, os ecos da salve-rainha» naquele verso de Coração do Dia (1958) onde se lê: ó cheia de doçura.

O tempo
Essencialmente há três linhas segundo a metáfora vitalista: a infância, a idade madura (onde se instaura a coincidência estrutural que faz representar a idade como verão) e por fim o declínio. Setembro, mês de passagem, o mesmo que Outono, com o sentido de melancolia. Inverno, tempo de ausências e um dos tempos de travessia. São sobretudo as formas verbais (crescer, chegar, aproximar, atravessar) que evidenciam o alcance metafórico da etapa. É o corpo o lugar que mais sofre a travessia. Dezembro traz em si a primavera (As Mãos e os Frutos, 1948), a presença de Dezembro neste verso mais do que afirmar ou expandir propriedades que em si figurariam a metaforização de um universo de desolação, desertificação ou esterilidade, reenvia para os sentidos de um Inverno fecundante pretextando a Primavera. Diremos prado bosque / primavera, / e tudo o que dissermos / é só para dizermos / que fomos jovens (Mar de Setembro, 1961). Visão global da metáfora desejo, exaltação, claridade, juventude. A Primavera como tempo (metáfora) de transição anunciando outra estação que será outra, mais acabada, metáfora do desejo enquanto plenitude: o Verão. Portanto, são impacientes e amargos os dias de Abril (Ostinato Rigore, 1964) e as luzes de Março aparecem adjectivadas de inquietas, loucas, despidas. Talvez, afinal, só o Verão (metáfora) conduza à coroa do lume: Esse gosto a sangue / que trazia a primavera, se primavera havia, / não conduz à coroa do lume (Branco no Branco, XVIII, 1984). O Verão (a luz, o sol, o calor, o incêndio, o sul, a brancura, as águas, as dunas, a animalidade, a habitabilidade...) aparece como lugar do desejo e da plenitude amorosa, metáfora feliz de sedução, conectando-se intimamente com as referências ao corpo: lábios, peito, flancos. Justamente o poema 26 de Mar de Setembro, 1961, intitula-se Eros e em Ostinato Rigore o poema Anunciação da Alegria é paradigmático ao nível de uma anunciação positiva:

«Devia ser verão, devia ser jovem
ao encontro do dia caminhava
como quem entra na água.

Um corpo nu brilhava nas areias
corpo ou pedra?, pedra ou flor?

Verde era a luz, e a espuma
do vento rolava nas dunas.

Aproximei-me desse corpo nu,
o coração latino de alegria.

De repente vi o mar subir o prumo,
Desatar inteiro nos meus ombros.

Sem muros era a terra, e tudo ardia».

Dentre as histórias de Verão, declaradas histórias de desejo, releva-se a presença do animal, do cavalo. Fábula é uma história exemplar que mostra a contemplação da cena fundadora, olhar de criança que descobre a realização plena do desejo: sobreleva a imagem do homem. Um cavalo ofegante, olhos cerrados, o suor escorrendo da raiz dos cabelos, espalhando-se pelas costas, pelos flancos, pelas pernas, quase todas descobertas. Um cavalo cego mordendo o céu branco de agosto, mas a terra chamou-o, e um relincho prolongado encheu o leito do ribeiro, morreu no alto dos amieiros. Por fim a paz desceu ao mundo. Esta noite preciso de outro verão sobre a boca crescendo nem que seja de rastos; O verão é branco e sempre ficam sinais (Véspera da Água, 1973), sinais do desejo». In Carlos Mendes Sousa, O Nascimento da Música, A Metáfora em Eugénio de Andrade, Edições Almedina, Cultura e Literatura Portuguesa do século XX, Coimbra, 1992, ISBN 978-972-400-678-9.

Cortesia de Almedina/JDACT