segunda-feira, 18 de maio de 2020

Manhã Submersa. Vergílio Ferreira. «Apesar de tudo, com a segurança daquele moço a cobrir-nos de protecção, eu sentia-me quase bem. Esquecera a minha aldeia, a serra, o adeus do Calhau»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Nem por isso, todavia, sosseguei inteiramente. O desafio dos meus olhos era o medo de todo o meu corpo alerta, de um terror recurvo à escuta. (Falo agora à memória destes últimos vinte anos e pergunto-me que destino atravessou a minha vida além desse pavor, que outra voz mensageira lhe clamou ao futuro além da voz de uma noite sem fim). No grupo, o seminarista mais velho esmagava agora os caloiros com o terrorismo da sua experiência: vocês vão ver o senhor padre Lino a Latim. Cada erro nas declinações, quatro palmatoadas. Que são declinações?, perguntei. Você logo aprende. Só casos são seis. Que são casos? Você logo vê. Nominativo, genitivo, e por aí fora. Logo sabe o que é bom. Apesar de tudo, com a segurança daquele moço a cobrir-nos de protecção, eu sentia-me quase bem. Esquecera a minha aldeia, a serra, o adeus do Calhau. Abri o farnel e comi. Nunca mais na minha vida eu comi com tanto gosto, como se naquele desdobrar de notícias e paisagens novas tudo em mim estivesse comendo comigo. O meu corpo colava-se avidamente ao mundo novo, injectado de sangue ardente à mínima sensação. E assim, era como se eu estivesse nascendo outra vez... A certa altura, porém, quando já não pensava em reforços para as nossas hostes, entrou um destacamento de mais quatro fatos pretos. Todos crescidos. Um vendaval de clamores varreu a carruagem de lés-a-lés. Olhei os magalas e vi-os, já conformados, falando no limite da sua curta importância, apontando com o dedo ocasionais curiosidades da paisagem que rolava. Definitivamente, sentámo-nos para dominar à minha roda, cada um dos seminaristas tentava provar o interesse das suas férias. Passámos à identificação individual, para nos sentirmos, de uma vez para sempre, camaradas.
E você, como se chama?, perguntaram-me. António Santos Lopes. Um bafo maligno de vergonha subiu-me logo do ventre, no estúpido receio de que todos percebessem que este nome, só usado nas cerimónias da lei, me ficava largo como um fato de esmola. Mas eis que um seminarista dos mais antigos meteu subitamente um dedo à memória e varejou qualquer recordação esquecida: António Lopes? António Santos Lopes. Ergueu os braços triunfantes: então é o Borralho! Era. Era o Borralho. Não quis saber como é que a minha sorte me viera apanhar ao comboio, e sofri em silêncio. Durante os primeiros meses de seminário, a lei do meu nome clamou ainda contra a injúria. Inútil. A lei acabou por se dar por vencida e nas conversas clandestinas, quando me queriam ofender, fiquei Borralho por força. Decerto, esse nome não é de modo algum ofensivo, até porque é vulgar. Mas ofendia-me a mim, como dói a toda a gente o nome que lhe não pertence, como doeria a imposição de uma pessoa que se não é. Porque o nome também é a nossa pessoa.
Reparei então que um dos quatro da última leva mal abrira ainda a boca. Taciturno, como se remoesse o projecto de um crime, com dois chapéus na cabeça, o velho encaixado no novo para o poupar, ele olhava duramente e fixamente a ideia do seu rancor. De tez coriácea de um filho da gleba, as mãos grossas nos joelhos, rude, possante, pensava tenazmente, perdido de nós. Porque não falava? Ó Gama, tu não falas?, perguntou um dos mais velhos, pensando comigo. O Gama. Nunca mais o esqueceria desde essa manhã de 7 de Outubro, às dez horas, sexta-feira. E pela vida fora, sempre que penso no Seminário, ou sonho com ele (porque sonho muitas vezes), é a imagem do Gama que me enche o sonho e o pensar, para lhes dar algum sentido. Perdeste a fala?, insistia o outro. Gama não falava. Direito no encosto, tinha só aquela máscara valente de uma vingança reflectida. Por terem chegado a qualquer conclusão, habituados, decerto, a entenderem-se por sombras, alguns seminaristas entreolharam-se sabidamente, apertando os lábios na suspeita de qualquer mal irremediável». In Vergílio Ferreira, Manhã Submersa, 1954, Quetzal Editores, 2011, ISBN 978-972-564-740-0.

Cortesia de QuetzalE/JDACT