quarta-feira, 20 de maio de 2020

O Livro do Amor. Kathleen Mcgowan. «Os cristãos sofreram muitos anos de tortura, no entanto usam agora toda a sua violência entre si. Precisamos perdoá-los, pois não sabem o que fazem»

Cortesia de wikipedia e jdact

Rosso. La Beauce. França. 390 d. C.
«A cera de abelha de pesadas velas que iluminavam o exíguo espaço da reunião pingava no chão da caverna. A pequena comunidade rezava suavemente, com devoção, seguindo a orientação da mulher etérea que estava à frente, no altar de pedra. Ela terminou a oração e ergueu o tesouro do seu povo, um manuscrito antigo, com capa de couro. O livro do amor. As únicas palavras verdadeiras do Senhor. A luz das velas cintilou no cabelo cor de cobre de madame Modesta quando ela beijou o livro. A fiel assembleia respondeu em uníssono. Para aqueles que podem ouvir. Fez-se um silêncio reverente, como se as palavras do Livro não pudessem ser seguidas por conversas triviais. Foi um dos jovens, um seguidor devotado e dedicado chamado Severin, que rompeu a quietude naquele ambiente sagrado. Como vai nosso irmão Potentiani Modesta respondeu, com a mesma voz calma e melodiosa de quando rezava: eu pude vê-lo hoje na prisão e lhe levei pão. Ele está bem. E com a fé inabalável, como deve se manter a sua. Severin não conseguiu controlar a agitação crescente, apesar de se esforçar bastante para superar o medo que o dominava. Você diz que ele está bem, mas por quanto tempo? Roma está matando cada dia mais gente do nosso povo, sob a acusação de heresia. Eles virão atrás de todos nós. A pequena comunidade murmurou concordando, depois de hesitar um pouco. Modesta, porém, sábia e paciente, jamais perdia uma oportunidade de ensinar as verdades que defendia. É de facto um tempo de tristeza quando os perseguidos se transformam em perseguidores.
Os cristãos sofreram muitos anos de tortura, no entanto usam agora toda a sua violência entre si. Precisamos perdoá-los, pois não sabem o que fazem. A frase de Modesta foi arrematada com um assobio agudo vindo da entrada da caverna. Tarde demais, ela e a congregação se deram conta de que tinham sido descobertos exactamente pelos homens dos quais se estavam escondendo. Em poucos minutos a tranquilidade da reunião religiosa foi substituída pelo caos quando uma comitiva de homens armados invadiu a única entrada da caverna, deixando bem claro que não havia possibilidade de fuga. Esses soldados estavam todos vestidos de maneira idêntica, manto e capuz pretos, que cobriam completamente a cabeça, com fendas sinistras à altura dos olhos. O líder deles adiantou-se e tirou o capuz, revelando uma tonsura de monge e uma pesada cruz de madeira pendurada no pescoço.
Concentrado em Modesta ele cuspiu o seu desprezo por uma líder mulher enquanto citava as epístolas de São Paulo. Não permitam que as mulheres ensinem, façam-nas calar. Madame Modesta de La Beauce, está presa por heresia. Modesta olhou para ele calmamente e o reconheceu. Irmão Timóteo. Você veio por minha causa, e irei com você. Mas deixe essas pessoas inocentes em paz. O nervoso jovem Severin entrou em pânico diante da possibilidade de perderem a sua líder, então deu um pulo para a frente, para impedir o avanço do irmão Timóteo. Você não a levará! Homens encapuzados se adiantaram. Modesta aproveitou a oportunidade para esconder o livro atrás dela, fora da vista do seu acusador. Ela ainda não se tinha dado conta do perigo que seus seguidores corriam. Uma mulher dedicada à essência do amor e da compaixão não é capaz de entender a mente de homens violentos com tanta rapidez. Os milicianos de capuz sacaram as suas armas e começaram a usá-las sem hesitação. Uma espada de dois gumes varou, primeiro, o coração de Severin; a vida dele jorrou do ferimento e baptizou a congregação com o seu sangue. O caos transformou o pequeno espaço quando os fiéis tentaram se espalhar, compreendendo finalmente que o perigo era real. A saída deles foi barrada pela violência cruel de uma força de ataque que não teve piedade do que restava da congregação. Madeleine!
Modesta procurou a filha na confusão, mas a menina já estava perto do altar, havia corrido na direcção da mãe. Miúda demais para os seus oito anos, Madeleine parecia ainda mais jovem, e Modesta sempre torceu para que isso fosse uma vantagem para ela. Tinha de salvar a filha. Precisava salvar o Livro. Modesta abraçou a menina, escondeu o livro nas dobras do vestido de Madeleine e puxou a capa por cima da roupa para protegê-lo melhor. No meio daquele caos ela berrou para o irmão Timóteo. Pare! Pare! Eu irei com vocês. Por favor, chega de carnificina. Não havia mais como parar. Os soldados encapuzados tinham executado todos os outros, deixaram o chão da caverna encharcado com o sangue dos fiéis inocentes. Irmão Timóteo fungou com nojo, enquanto passava por cima de um corpo ensanguentado, e assumiu um ar de tédio para capturar a sua presa. Poupe a vida dessa criança, implorou Modesta. Você é um homem de Deus. Não pode atribuir os pecados dos pais aos filhos». In Kathleen Mcgowan, O Livro do Amor, O Legado de Maria Madalena, Rocco, 2009, ISBN 978-853-252-513-0.

Cortesia de ERocco/JDACT