quinta-feira, 7 de maio de 2020

As Farpas. Crónicas de Jornal. Ramalho Ortigão. «Fora, em vez de irem empilhados como no interior, os passageiros são ensanduichados metodicamente com as bagagens e com as mercadorias…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) É um bom tipo do género a pequena igreja velha das Almas, à entrada de Viana pelo lado de Meadela. Rodeia-a um pequeno adro, em que a erva sobe ao último degrau do cruzeiro da Via Sacra. A sombra de seis altos e esguios ciprestes marca a hora no chão, como no mostrador de um relógio de sol, e no tecto do templo, apainelado em madeira de castanho, uma pintura moderna, recente produto da arte constitucional do último quartel do nosso século, representa um óptimo burguês de Viana, director talvez do Banco Agrícola e Industrial, no acto de subir ao Céu, dando vivas à Carta e à Junta da Paróquia. Mais para o interior do campo deixa de grassar a pintura moderna nos monumentos religiosos.
Os tectos das pequenas igrejas esverdinham-se de musgo; as andorinhas fazem ninho nos relevos arquitectónicos junto do postigo gradeado do coro; crescem os tortulhos na base do madeiramento dos altares; um Bom Jesus, ingenuamente carpinteirado, parece dormir tranquilo, grato à simplicidade encantadora deste culto, satisfeito de uma felicidade vegetal nas suas cinco chagas, as quais, lembrado talvez da sua anterior existência de laranjeira, ele toma antes por alporques do que por lançadas, tendo mais vontade de dar folha e fruto aos bons viventes do que de lhes pedir fel do alto da sua cruz de talha, entre os palmitos murchos da última festa do orago! E, por fora da torre estreita e quadrada, a corda do sino, pendente do gancho da porta, oscila, solta no espaço à viração dos campos, como fazendo batuta de regente ao compassado ondular das messes.
Os abades têm as batinas velhas, os cabeções um pouco pingados de rapé e os sapatos cambadas pelas longas caminhadas às codornizes; mas são geralmente gordos, saudáveis e nédios. Os enfezados e os magrizelas são vítimas de antigas enfermidades heterodoxas, contraídas no tempo de minoristas quando estudantes nos seminários de Braga ou de Lamego, não jamais porque os definhe como curas de almas a esterilidade dos passais ou a magreza dos pés de altar. Alguns destes pastores espirituais são particularmente interessantes. Numa freguesia deste bispado o pároco, desejando desviar os rapazes seus fregueses do vício funesto do jogo, conseguiu fazer representar o drama salutar intitulado Trinta Anos ou a Vida de Um Jogador por uma companhia de curiosos analfabetos, que ele mesmo ensaiou, ensinando-lhes os papéis de ouvido, como lhes ensinara a cartilha. Na representação uma das personagens da peça, a dama, leu de-fio-a-pavio uma carta que recebia em cena, e leu-a bem, no meio dos aplausos gerais do público. Somente, por um infernal descuido, o jovem rapaz das vacas, incumbido do interessante papel da heroína a quem era endereçada a epístola, esqueceu-se de a abrir, e foi através do sobrescrito lacrado que leu com ardor, vibrante de comoção trágica, a longa narrativa do fatal caso!
Um outro, com luzes da língua francesa e espírito aberto ao modernismo, começou a prática de uma dominga quaresmal dirigindo-se aos fiéis da sua pequena paróquia rural nos seguintes termos de dentista de almas: madamas e monsiús. Esta erudita amenidade de boulevardeiro produziu sobre o pêlo de todas as ovelhas presentes uma satisfação enorme. De resto, o meu amigo Guerra Junqueiro, o qual enquanto não fizer da sua casa um poema, que eu espero, fez já um poema da casa que habita em Viana, tinha razão ao dizer-me que esta é a terra da promissão para os artistas e para os abades: a paisagem do Lima deslumbra e engorda. Uma coisa inteiramente especial e digna de estudo é o aspecto das numerosas diligências, breaks e chars-à-bancs, que circulam sobre estas estradas, desde os Arcos e desde Ponte de Lima até Viana.
Dois pequenos garranos, quando não é um só, puxam por cima do macadame faiscante de sol as mais fantásticas carradas de gente e de objectos que a imaginação pode conceber. Dentro do veículo senta-se a primeira camada de passageiros nas bancadas. Depois de todos os lugares ocupados estreitissimamente, à cunha, o veículo considera-se completamente vazio, e mete-se-lhe a segunda camada de passageiros, colocada exactamente em cima da primeira. Feita esta operação começa o interior do carro a achar-se quase cheio, mas não cheio de todo, porque entre o tecto, os joelhos e os bustos dos passageiros da segunda camada nota-se ainda um espaço oblongo a toda a extensão da berlinda, desde a portinhola do fundo até ao vidro da frente. Preenchido este espaço com um passageiro estendido ao comprido, passa-se a ocupar os bancos da imperial e o tejadilho.
Fora, em vez de irem empilhados como no interior, os passageiros são ensanduichados metodicamente com as bagagens e com as mercadorias, pela ordem seguinte: camada de mercadorias, primeira camada de passageiros, primeira camada de bagagens, segunda camada de passageiros, segunda camada de bagagens; e em cima de tudo isto, o penso para os garranos, os merendeiros e os varapaus dos passageiros e, no ar, a um lado, seguro da almofada pela cinta, seguro do guarda-lama pelas pernas, o cocheiro levado a braços pelos viajores. Para quem olha de longe, a carruagem desaparece completamente sob a enorme massa viva, e não se vê mais que um enorme e inverosímil cacho de gente agarrada uma à outra por um engaço misterioso, bamboleando ao sol, oscilando da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, e prosseguindo lentamente, levado por duas formigas.
Chegados ao termo da viagem, na praça mais espaçosa da povoação, os garranos param, a carruagem esvazia-se, e a praça enche-se. Examinei atentamente o cocheiro de um desses veículos, e segui os seus movimentos desde que baixou do espaço até que o deixaram a sós com a parelha e com a carrimónia nua». In Ramalho Ortigão e Eça de Queirós, As Farpas, 1878, Crónica Mensal, Tipographia Universal, Principia Editora, 2003-2005, ISBN 979-972-881-840-0.

Cortesia deTUPrincipiaE/JDACT