terça-feira, 10 de abril de 2018

Decameron. Giovanni Boccaccio (1313-1375). «E quem negará que, seja ele quanto for, convirá dá-lo muito mais às amáveis senhoras do que aos homens? Porque elas, temerosas e envergonhadas, guardam as chamas amorosas escondidas…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«É humano ter compaixão dos aflitos: e, embora em todos ela caia bem, espera-se compaixão máxima daqueles que já precisaram de conforto e o encontraram; entre estes, se alguém há que já precisou dele, que o prezou ou já sentiu a alegria de tê-lo, esse sou eu. Pois, tendo sido sobremaneira inflamado desde a primeira juventude até ao presente por elevadíssimo e nobre amor (talvez, pelo modo como falo, bem mais do que pareceria conveniente à minha baixa condição), ainda que para os atilados que dele tiveram notícia eu fosse louvado e muito mais reputado por tal facto, nem por isso deixou de me ser penoso suportá-lo, não decerto pela crueldade da mulher amada, mas pelo excessivo ardor concebido na mente por um desejo pouco temperado: e este, não me permitindo outrora ficar dentro de limites convenientes, com frequência me fazia penar mais do que seria necessário. E a tais penas deram tanto refrigério os agradáveis colóquios com alguns amigos e suas louváveis consolações que acredito firmemente dever a isso o facto de não estar morto. Mas, como quis Aquele que, sendo infinito, ditou a lei imutável de que todas as coisas do mundo devem ter fim, meu amor, que era mais fervoroso que qualquer outro e não pudera ser destruído nem vergado por nenhuma força de vontade, sensatez, vergonha evidente ou perigo que dele pudesse decorrer, com o passar do tempo diminuiu sozinho, a tal ponto que em minha mente deixou de si apenas o prazer que de hábito ele concede a quem não tenha navegado por seus mais tenebrosos pélagos; porque, embora costumasse ser tão penoso, eliminadas as suas inquietudes, sinto que permaneceu o seu deleite.
Contudo, embora as penas tenham cessado, nem por isso me fugiu a lembrança dos benefícios recebidos daqueles que, tratando-me com benevolência, ficavam pesarosos com as minhas atribulações: tal lembrança nunca desaparecerá, a não ser com a morte, disso estou certo. E como, segundo creio, de todas as virtudes a gratidão é a mais recomendável, sendo condenável o seu contrário, para não parecer ingrato decidi propôr-me, dentro das minhas pequenas possibilidades, oferecer algum alívio (agora que posso dizer-me livre) em troca do que recebi, se não àqueles que me ajudaram e, por serem sensatos e venturosos, talvez não precisem dele, pelo menos àqueles aos quais ele venha a caber. E, embora o meu apoio ou conforto (se quisermos assim dizer) possa ser, como de facto é, pouca coisa para os necessitados, parece-me bom oferecê-lo onde a necessidade se mostrar maior, seja porque então será mais útil, seja porque lhe será dado mais apreço.
E quem negará que, seja ele quanto for, convirá dá-lo muito mais às amáveis senhoras do que aos homens? Porque elas, temerosas e envergonhadas, guardam as chamas amorosas escondidas dentro do peito delicado, e, como bem sabe quem as sentiu, têm estas muito mais força que as chamas declaradas: além disso, coagidas por vontades, gostos e ordens de pai, mãe, irmãos e marido, ficam a maior parte do tempo encerradas no pequeno circuito dos seus aposentos, permanecendo quase ociosas e, querendo e não, revolvendo num mesmo instante diversos pensamentos que não podem ser todos sempre alegres. E, se, em decorrência de tais pensamentos, nascer na sua mente alguma melancolia trazida por ardente desejo, esta ali haverá de ficar, para seu grande pesar, caso não seja afastada por novas conversações: sem contar que as mulheres são muito menos fortes que os homens para opôr resistência; coisa que não ocorre com os homens enamorados, como podemos ver claramente. Estes, se afligidos por alguma melancolia ou por pensamentos pesarosos, têm muitos modos de encontrar alívio ou esquecimento, pois, desde que queiram, não lhes falta a possibilidade de passear, ouvir e ver muitas coisas, praticar lavores em forma de cetra, caça e pesca, cavalgar, jogar ou comerciar: desses modos cada um encontra forças para recobrar o ânimo, no todo ou em parte, e para afastar-se do pensamento pesaroso pelo menos por algum tempo, após o que, de um modo ou de outro, ou se alcança o consolo ou o pesar diminui.
Portanto, para que por meu intermédio seja corrigido o pecado da fortuna, que, onde menos devia, mais avara de amparo foi, tal como vemos nas mulheres delicadas, pretendo prestar socorro e refúgio àquelas que amam, pois às outras bastam a agulha, o fuso e a dobadoura, contando cem novelas ou fábulas ou parábolas ou histórias, como se queira chamar, narradas em dez dias por um honesto grupo de sete senhoras e três rapazes, formado nos tempos mortíferos da peste que passou, bem como algumas canções, cantadas pelas senhoras acima referidas, para seu deleite. Em tais novelas haverá casos de amor agradáveis e pungentes, bem como outras aventuras ocorridas nos tempos actuais e nos antigos; e das coisas divertidas que nelas são mostradas as senhoras que as lerem poderão extrair não só prazer como também orientações úteis, pois reconhecerão aquilo de que se deve fugir e aquilo que deve ser seguido: coisas que não podem ocorrer sem que se livrem de seu pesar. Queira Deus que isso ocorra; e caberá agradecer ao Amor, que, libertando-me das suas cadeias, concedeu-me o poder de dar atenção aos prazeres delas». In Giovanni Boccaccio (1313-1375), Decameron, 1354, Relógio d’Água, ISBN 978-972-708-879-9, L&Pm, 2013, ISBN 978-852-542-941-4.

Cortesia de Ed’Água/L&Pm/JDACT