sábado, 21 de abril de 2018

A Arca Perdida da Aliança. Tudor Parfitt. «Um longo chifre de antílope foi introduzido na cubata através da abertura e um som triunfal silenciou o som estridente das mulheres»

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A Gruta
«(…) O chefe mposi sentou-se sozinho. Estava mal de saúde e dava a impressão de estar preocupado. Olhou para o chão de adobe, apoiando a cabeça no punho do seu bastão. Com um movimento rápido, mandou as suas mulheres servirem cerveja. Está ali parada e não está a servir de nada para ninguém! Já estou a servir, ripostou a mais velha das mulheres, erguendo o pote da cerveja com os braços musculosos. Tarde de mais, resmungou ele. O pote de chibuku passou de mão em mão, da direita para a esquerda, sem manifestações de pressa indelicada, como um decantador de Madeira após um jantar de professores em Oxford. O silêncio foi quebrado pelo chefe a chamar pelo nome as quatro mulheres. Eram singularmente diferentes umas das outras em idade, tamanho e beleza. Responderam à vez, ajoelharam-se ao lado umas das outras e começaram a bater palmas. Viraram-se de costas para o chefe, puseram-se em pé e acenderam velas, enquanto outras mulheres começaram a ulular e a assobiar.
Um longo chifre de antílope foi introduzido na cubata através da abertura e um som triunfal silenciou o som estridente das mulheres. O homem que tocava o chifre era alto e bem constituído. Trazia uma saia feita de fitas de pele preta e, à volta da cabeça, tinha uma fita de pele de leopardo. Era o curandeiro. O seu nome era Sadiki, um dos nomes de clãs lembas,nome inequivocamente semita cuja presença na África Central era uma misteriosa anomalia. Foi ele que dirigiu a cerimónia. Tinha chocalhos magagada feitos de abóboras-meninas secas presos aos tornozelos com correias de fibra de casca de árvore. Bateu com os pés no chão de terra da cubata e soprou no chifre, produzindo uma nota persistente. Quatro mulheres idosas que estavam sentadas juntas no banco de adobe que circundava a cubata começaram a bater em tambores de madeira. O resto dos convidados juntou-se atrás do curandeiro, impulsionados para os pequenos movimentos vibrantes da dança pelos ritmos dos tambores e dos chocalhos magagada, mal se mexendo, perdidos na concentração.
Sadiki estava no epicentro da tempestade de som, dirigindo o seu movimento. Tinha um ar poderoso e magnificente e olhava arrogantemente à sua volta. Mexeu sugestivamente um pé. Depois, uma mão. Seguiu-se o corpo e, colocando-se em frente de um dos tambores, dançou, como David perante a Arca, parando para soprar o chifre de carneiro semelhante ao shofar em que outrora se soprara no Templo de Jerusalém. As tamborileiras pareciam idosas e frágeis de mais para conseguir produzir um som daqueles e apesar disso haviam de tocar tambor durante horas sem parar.
A cerveja começou a circular mais depressa. A pobreza tinha-se apoderado da aldeia. Há muito tempo que não circulavam com tanta liberalidade potes de cerveja. Alguns dos homens, já desabituados de beber, começavam a estar inebriados. A mulher mais velha do chefe parecia já estar possuída pelos espíritos dos antepassados. Olhando para um lado e para o outro, caiu no chão a chorar. Olhando à sua volta com o olhar perdido, levantou o vestido de estilo ocidental acima das nádegas gordas e marmóreas e acima da cabeça. Dançou nua, colocando-se no espaço deixado vago por Sadiki em frente das tamborileiras.
O ritmo acelerou-se outra vez. Sadiki, com o suor a escorrer-lhe pelo peito largo e musculoso, pôs um toucado de penas de águia negra na cabeça da mulher nua. Sevias disse-me que aquilo era para mostrar respeito aos antepassados. Ela continuou a dançar, projectando grandes sombras nas paredes iluminadas por veias. Caiu de joelhos, a chorar convulsivamente, à frente do velho chefe e colocou-lhe ternamente o toucado na cabeça». In Tudor Parfitt, A Arca Perdida da Aliança, 2006, Livros d’Hoje, Publicações dom Quixote, 2008, ISBN 978-972-203-541-5.

Colecção de PdomQuixote/JDACT