quarta-feira, 11 de abril de 2018

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Diz-se que foi Taxfin, marido da mãe delas, Zulmira, e governador de Córdova, quem convenceu o califa a regressar a Coimbra para as resgatar»

jdact

Coimbra, Julho de 1117
«(…) Só viu o conde Henrique uma vez. Tinha três anos, levaram-no pela mão e na sua memória existe apenas um quarto escuro e uma cama enorme, onde umas barbas falantes e acinzentadas escondem um homem velho e deitado, magro e rouco. Lembra-se de uma mão fria e ossuda, de uma pele descolorida, de um enjoativo cheiro a incenso e de uma sensação de dor no seu progenitor, que soltava queixumes intermitentes. E lembra-se do sinistro rumor que ouviu: foi envenenado...
Depois, havia o eco das palavras, muitas, que foram proferidas em francês, a língua do pai. Apesar de frágil, ainda falou, dirigiu-se a ele. Meu filho, tendes de tomar conta das minhas terras, tendes de as defender dos infiéis, como eu defendi sempre. Ao longo da sua vida, o meu melhor amigo recordou ditos assim, que seu pai, o conde Henrique, lhe lançou quando ele tinha três anos. Ditos sobre justiça, o futuro e a guerra, e umas palavras finais incompreensíveis, balbuciadas aos soluços, sobre Jerusalém, Cristo, três homens. Ditos que de pouco lhe valiam naquele dia em Coimbra, em frente daqueles milhares de inimigos. Ali, tudo o que ele desejava era convocar a fama de guerreiro do pai, para com ela aterrorizar os homens do califa. Estará na tenda grande, ainda a dormir?, perguntara-me ele, na manhã anterior. Afonso Henriques acreditava que Ali Yusuf, o almorávida de Marraquexe, regressara pela segunda vez a Coimbra porque queria dizimar, uma vez mais, a família do rei de Leão. Queria matar o neto de Afonso VI, a quem já matara o filho Sancho. Ainda me lembro dessa manhã em Coimbra, tinha eu nove anos. O príncipe, um ano mais novo do que eu, perguntou-me: Lourenço, se o meu pai fosse vivo, o que faria? Atacaria as tropas infiéis, fazendo uma surtida? Ou aguentaria o cerco?
Enquanto um solitário arqueiro ciranda no alto do castelo, para cá e para lá, o menino perscruta melhor o Mondego, que parece escondido no nevoeiro, como se as suas águas estivessem envergonhadas e pedissem desculpa por ajudar os mouros. Nas margens, a duzentos passos do acampamento, há quem nade, vê cabecinhas à superfície e corpos inteiros seminus, a caminharem para o rio. Devem ir lavar-se logo pela manhã. Os árabes lavam-se muito, foi o que lhe explicou a menina moura, a mais nova, Zaida, que é muito mais simpática do que a irmã mais velha, Fátima, que gosta de andar à bulha; isso já deu para perceber nestes vinte e poucos dias que conviveu com elas em Coimbra. Elas estão na cidade desde o ano anterior, quando ficaram prisioneiras dos cristãos, depois do primeiro cerco de Ali Yusuf.
Diz-se que foi Taxfin, marido da mãe delas, Zulmira, e governador de Córdova, quem convenceu o califa a regressar a Coimbra para as resgatar. Ontem à tarde, Fátima ameaçou-o, enquanto brincavam no pátio da alcáçova. Ele jurou que os cristãos iam matar os infiéis todos e ela cresceu para ele, enfurecida, berrando: se não vos calais, levais um murro! Ele desatou a correr, fugindo dela e repetindo bem alto o que dissera. Mas até ele, com oito anos, sabe que Coimbra está em perigo. Espanta-o que os infiéis não ataquem a cidade com mais violência. Se avançassem ganhavam, foi o que ouviu dizer. Terá sido meu pai, Egas Moniz, ou o meu tio Ermígio, quem assim falou? O Afonso Henriques e eu, bem como os meus irmãos Afonso e Soeiro, fomos educados pelos dois, vivemos com eles em Lamego, e foram eles que nos levaram para Coimbra. Se tivessem sabido daquele cerco, não teriam certamente ido. Tratava-se apenas de uma visita estival de cortesia à mãe do meu melhor amigo. Ou melhor, à condessa dona Teresa». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/JDACT