domingo, 1 de abril de 2018

Os Forais Tomarenses de 1162 e 1174. Manuel S. A. Conde. «A humilhante punição física era aplicada aos homens de condição inferior, aos ladrões que não pudessem pagar as respectivas coimas e a certas agressões causadores de feridas»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) O dispositivo leva a crer que tais roubos e injúrias eram fruto da conflitualidade interna, derivando quer da ausência de regulamentação de princípios proclamados no primeiro foral, quer da falta de códigos de processo judicial e penal e de garantias aos magistrados, já que nele relevam extensivamente as cláusulas relativas à paz e justiça internas. As demais normas reportam-se à tributação e vida económica, abrindo-se já aos horizontes mercantis. O enfoque penal justificava a primeira menção ao grupo dos dependentes, concretamente os mouros. Estes não gozavam de personalidade jurídica, sendo os seus donos responsáveis pelos delitos que cometessem. Sobre eles incidiam penas corporais: podiam ser lapidados, açoitados ou, até, queimados. Mantinha-se o concilium como órgão judicial, ao qual se apresentavam as queixas, e o juiz como magistrado capaz de administrar a justiça, a par do comendador templário da vila (e seu alcaide-mor). A par desta intromissão senhorial, outra se verificava: a do mordomo, funcionário da Ordem no concelho, com largas atribuições, sobretudo na instrução do processo e na execução por dívidas. Os oficiais de justiça, incluindo funcionários subalternos como o saião e o porteiro do alcaide eram coutados em 500 soldos, procurando-se assim evitar pressões físicas ou retaliações. Os que cuidavam da justiça deviam ser íntegros e prestigiados. Por isso, determinava-se que os sinais do alcaide e do juiz fossem tidos por testemunhos, ao mesmo tempo que se castigava com dureza a corrupção e aliciamento do mordomo ou das justiças, ou o concluío entre o mordomo e vozeiros.
Definia-se o quadro do processo judicial. Apresentada a queixa aos órgãos competentes, através da fórmula do tibi istam querimoniam pro voce, identificava-se a questão central do pleito, sobre a qual devia incidir a prova. Formulada a intentio, a acusação, procedia-se ao apuramento da verdade, através de averiguações (per exquisam), ou ouvindo os depoimentos de testemunhas das partes. Todos deviam colaborar no apuramento da verdade: quem a conhecesse e negasse, tinha de reparar os prejuízos no dobro e jamais seria aceite o seu testemunho. O rol dos delitos e respectivos castigos, multas pecuniárias (calupnias, ou coimas), ou penas físicas, preenche boa parte do clausulado. A humilhante punição física era aplicada aos homens de condição inferior, aos ladrões que não pudessem pagar as respectivas coimas e a certas agressões causadores de feridas. As coimas mais graves referiam-se aos crimes tidos por mais nefandos: os exercidos contra a pessoa humana, a família e a casa. Impõem-se algumas breves observações acerca dos principais valores que se impunha salvaguardar.
Relativamente às agressões e crimes contra a pessoa humana, sublinhe-se a muito díspar ponderação das penas que lhes dizem respeito, conforme estes são praticados no couto da vila, ou fora dele. É que a prática da violência constituía um problema menor nos limites do espaço rural, mas era particularmente perturbadora do viver urbano, razão pela qual, aliás, se proibia o porte de arma no perímetro urbano. Note-se, também, a oposição aos agrupamentos de familiares e amigos, visando agredir outrem.
Por outro lado, o respeito pela estrutura familiar e pelo espaço domiciliário, justificando não só se punissem com severidade os delitos contra ela praticados, mas também a afirmação dos direitos de inviolabilidade do domicílio, que só poderia ser penhorado por decisão judicial, ou do marido reclamar mulher e filha solteira, onde quer que se encontrassem, ou a recuperar filho dele dependente, sem que daí decorresse qualquer punição. Também eram merecedores de provimento os actos perturbadores da vida comunitária ou violadores da propriedade privada. Sobre este aspecto, é de registar que a pessoa do delinquente não beneficiava de quaisquer garantias, podendo o proprietário dos haveres afectados prendê-lo como lhe fosse possível, ou feri-lo, mesmo gravemente, sem que tivesse de ressarci-lo, ou sofresse qualquer outra punição». In Manuel S. A. Conde, Os Forais Tomarenses de 1162 e 1174, Casa de Sarmento, Centro de Estudos do Património, Universidade do Minho, Revista Guimarães, nº 106, 1996.

Cortesia de CasaSarmento/RGuimarães/JDACT