quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Da Magia na Antiguidade. João P. Mendes. «… a ‘branca’, ou arte de produzir deter minados efeitos aparentemente maravilhosos, mas que, observados com atenção, se devem apenas a causas naturais…»

Cortesia de wikipedia

«As fronteiras entre os domínios do racional e do sobrenatural eram extremamente imprecisas na antiguidade. Remontam ao inundo indo-ariano as primeiras tabulações a respeito da magia, ou seja, a religião dos magos, que eram confundidos com os sacerdotes persas e medos da religião de Zoroastro, também denominados pelos gregos e romanos de caldeus. Conta-nos Heródoto que os magos (mágoi, goetes) iranianos se consagravam a práticas divinatórias, médicas e astrológicas. A tradição atribuía aos sábios da Caldeia o dom de estabelecer relações entre os movimentos dos astros e os fenómenos ocorrentes tanto nos céus como na terra. Na verdade, em torno dessa verdadeira casta de entendidos nas coisas ocultas ao comum dos homens, criou-se desde cedo uma autêntica aura de prestígio que se traduzia em veneração, a um só tempo respeitosa e temida. Na literatura romana, os segredos da magia e da adivinhação são sempre atribuídos aos caldeus. De facto, a casta dos magos da Caldeia, pois de verdadeira casta se tratava, com vínculos que se pretendia remontarem aos primórdios da civilização sumero-acadiana, arrogava-se a posse de fórmulas e conhecimentos secretos, que exercitavam principalmente nas práticas divinatórias e médicas, além das astrológicas. As segundas tinham vasta aplicação nos casos de epilepsia e distúrbios da mente (endemoninhados).
Os magos eram chamados de ashipu e tnashmashu (exorcistas) e cultuavam como sacerdotes o deus Ea, de Eridu, e seu filho Marduk, de Babilónia. Segundo a crença geral, os feiticeiros causavam malefícios e concitavam os demónios contra os homens, tendo os magos a missão de neutralizá-los com exorcismos e encantações. O culto dos mortos, de que inúmeros livros chegaram até nós, preservados com as múmias, tem, no Egipto antigo, a sua origem no reino da magia, que imperava sobre a vida e sobre a morte. Havia ali duas espécies de magia: a lícita e a ilícita. Com o seu exercício buscava-se quer o domínio das forças da natureza, quer a concessão pelos espíritos do que desejassem. Um complexo ritual, que incluía o uso de amuletos e encantações, era tributário de experiências e saber acumulado e visava a protecção contra animais venenosos e ferozes, bem como a prevenção de moléstias e calamidades. Alguns de seus princípios constituíam o rudimento de uma verdadeira ciência.
Entre os hebreus, a magia está documentada, por exemplo, na erecção da serpente de bronze que Iavé ordenou a Moisés, para curar da mordedura desses répteis os castigados filhos de Israel que a olhassem. O livro dos Números igualmente relata a actuação do adivinho e mago Balaão, cujos poderes ocultos são requeridos por Balac, rei de Moab, a fim de deter os avanços dos israelitas por seu território. Seja ou não originária da Pérsia, a magia adquiriu os contornos e a substância que a erigiram em saber e poder aos olhos dos povos num vasto âmbito, que ia do misticismo individual e colectivo ao reino das sombras da morte, dos segredos por detrás dos fenómenos naturais, como terramotos, eclipses, chuva, sol e tempestades, ciclo das estações, geração e destruição de animais e plantas, alterações climáticas e ocorrências meteorológicas. Tudo estava imerso em névoa espessa e era permeado pelo medo.
Lucrécio reverencia Epicuro como um deus, por haver exilado das mentes humanas os terrores que as oprimiam, desvendando os segredos dos deuses e das coisas escondidas, mostrando que tudo era fruto da ignorância: as fronteiras desta recuam à medida que avança o conhecimento. O homem primitivo, ainda ignaro de sua independência e autonomia em relação à natureza, à qual não contemplava como objecto e sim como a si mesmo no interior de um espelho côncavo, jamais admitia, como totalmente impensável, intervir nas leis ou fenómenos naturais. A medida, porém, que ia adquirindo a noção da sua identidade contraposta ao mundo circunstante, foi acalentando o desejo, feito de curiosidade e ambição de poder, de penetrar e interferir nessas leis e nesses fenómenos. A magia surgiu com as práticas ingénuas e ocultas que pretendiam produzir efeitos contrários ou calculados de derrogação de tais leis da natureza. No decurso dos tempos, instituíram-se, por assim dizer, dois tipos de magia: a branca, ou arte de produzir deter minados efeitos aparentemente maravilhosos, mas que, observados com atenção, se devem apenas a causas naturais: a negra, apanágio de certos indivíduos que pretendem obter efeitos sobrenaturais graças à intervenção de espíritos, em especial maléficos. O pressuposto originário parece ser o raciocínio elementar segundo o qual as mesmas causas surtem efeitos idênticos, e agir sobre a parte equivale a agir sobre o todo. Isto se comprova, entre outras coisas, pelo achado de objectos, como o célebre fígado de Piacenza, que exibe em seus bordos a compartimentação microcósmica do macrocosmos». In João P. Mendes, Da Magia na Antiguidade, Revista Humanitas, volume XLV, 1993, Universidade de Coimbra.

Cortesia da UCoimbra/JDACT