sábado, 12 de setembro de 2015

Piratas em Buarcos. Digressão Épica na Oração de Sapiência do padre Francisco Machado. 1629. Carlota Urbano. «… assim como o corpo é mantido e suportado pelos nervos, também a guerra o é pelo dinheiro. … a Sabedoria é o nervo da guerra…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Reavaliação dos Critérios de Produção Literária do Século XVI
«Escritas sob a influência de um conjunto de preceitos e lugares-comuns vigentes no meio humanista do renascimento português, as orações de Sapiência do século XVI que têm vindo a ser estudadas constituem um corpus vasto e riquíssimo, contributo notável para o estudo da evolução do ensino, da sociedade, do pensamento e da cultura no Portugal do seu tempo. Revisitar esta produção literária, bem como os estudos feitos a seu propósito será sempre útil ao investigador do humanismo. As orações de Sapiência do século XVII, porém, mais distantes da observância daqueles preceitos, não foram ainda objecto de um estudo sistemático. Talvez porque não foram publicadas e decerto porque são menos conhecidas, estas orações permanecem copiadas em volumes manuscritos como tanta outra literatura novilatina, mas valeria a pena conhecê-las mais profundamente pois documentam a evolução dos gostos e critérios de produção literária do seus contemporâneos e oferecem por vezes iluminação e esclarecimento sobre factos, acontecimentos e pessoas do seu tempo.
O que à partida desperta mais interesse nestes textos é a sua evidente diferença em relação aos textos congéneres do século XVI. Podemos agora falar com mais propriedade da Oração de Sapiência do mestre de Retórica, Francisco Machado, da Companhia de Jesus proferida na Universidade de Coimbra em 1629. Mesmo uma leitura superficial desta Oração nos permite admirar a sua originalidade e apreciar agradavelmente as diversões que o autor nos oferece. Habituado à unidade partilhada pelas orações de quinhentos que o modelo ciceroniano inspira, o leitor de hoje não pode deixar de se surpreender com o texto de Machado que, sem dúvida, nos revela o cansaço do estereótipo daqueles textos e a procura da novidade, quer no conteúdo, quer na forma. O discurso de Francisco Machado não cede o habitual destaque ao louvor de cada disciplina, e pouco ou nada diz de novo acerca de cada campo do saber. O que impressiona o leitor não é, pois, o tema, mas a argumentação. Na verdade, as disciplinas não constituem a matéria fundamental do discurso, elas são apenas o pretexto para descrições ou episódios mais ou menos longos que, esses sim, impressionam o leitor.
A diferença deste texto decorre, pois, de uma opção do orador que, não isoladamente, mas no contexto da sua geração, denuncia a valorização do mouere e do delectare em prejuízo do docere. Sem o sacrifício, porém, da unidade e coerência da oração que os princípios da harmonia, brevidade e equilíbrio clássicos inspiram, Francisco Machado revela uma clara preferência pelo recurso dos exempla e entre estes opta sobretudo pela narratio, evitando o abuso e o cansaço destas formas pelo recurso pontual à forma breuis e à descriptio. Optando pela forma narrativa do exemplum Machado introduz autênticas digressões que lhe permitem revelar o seu talento e virtuosismo na capacidade de imaginar e compor os episódios. Um destes é o episódio do ataque de piratas holandeses à vila de Buarcos socorrida depois por um exército de mestres e alunos da Universidade de Coimbra. Este é um caso típico de argumentação absolutamente exterior à demonstração em causa.
O tema que confere unidade à oração é o louvor das riquezas da Sabedoria e a demonstração de como elas são superiores a todas as outras e as únicas que devemos ter por verdadeiras. Vejamos como Francisco Machado estabelece a sua ligação com o episódio com que nos quer brindar. Depois do louvor do Direito no qual Francisco Machado usa o tópico já recorrente segundo o qual os estados prosperam e vivem em paz quando respeitam as leis sagradas e civis, e o aplica a Portugal a quem não faltaria a fazenda se guardasse o tesouro de sabedoria da justiça, o autor segue para uma digressão que aproveita o ensejo da alusão ao estado crítico do reino e à grandeza perdida de Portugal. A fuga para este excurso não é gratuita, Machado não perde a oportunidade de, por meio deste artifício, trazer ao auditório, não um exemplum clássico, nem um outro inteiramente inaudito, mas um episódio conhecido da comunidade universitária que decerto se interessaria vivamente pela narrativa de um acontecimento que recentemente a envolvera.
O excurso é anunciado por uma máxima que Machado se propõe reformar: se os antigos diziam que o dinheiro é o nervo da guerra, com mais propriedade o mesmo se diria da Sabedoria, pois já muitas guerras terão começado sem dinheiro mas nenhuma sem Sabedoria. Veteres belli neruos pecuniam appellarunt, nec immerito. Quemadmodum enim corpus neruis continetur, ac sustentatur, sic bellum pecunia. Rectius tamen belli neruos dicerent sapientiam, guia sine pecunia nonnunquam bellum inferri poterit, non uero sine sapientia. Tollite stipendia, uectigalia, commeatus, praemia, dona militaria; si una supersit sapientia, nihil eorum desiderabitur. Tollite signa, hastas, gládios clypeos: tollite reliquum armorum genus, si unus tantum sapientiae thesaurus non deficiat, haec omnia dimicabunt. Os antigos chamavam ao dinheiro, e não sem fundamento, o nervo da guerra. Com efeito, assim como o corpo é mantido e suportado pelos nervos, também a guerra o é pelo dinheiro. Com mais razão, porém, diriam que a Sabedoria é o nervo da guerra, pois sem dinheiro, não poucas vezes poderá alguém ter começado uma guerra, não porém sem Sabedoria. Acabai com os soldos, com as rendas, com os lucros, com os prémios, com as recompensas militares; se apenas a Sabedoria subsistir, não se sentirá a falta de nenhuma destas coisas. Deitai mão dos estandartes, das lanças, das espadas afiadas, deitai mão de tudo o mais que são armas. Se somente o tesouro da Sabedoria vos não faltar, todas elas vos servirão». In Carlota Miranda Urbano, Piratas em Buarcos, Digressão Épica na Oração de Sapiência do padre Francisco Machado, 1629, Revista Humanitas, volume XLIX, 1997, Universidade de Coimbra.

Cortesia da UCoimbra/JDACT