sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Contos Proibidos. Rui Mateus. «A corajosa campanha de Humberto Delgado, no final dos anos 50, criara uma grande esperança no seio da maioria dos portugueses. O primeiro núcleo de Londres da Acção Socialista foi lançado no início de 1970 por mim, com Alberto Lagoa, Carlos Alves, Pedro Ferreira Almeida, …»

jdact

Os anos da inocência, 1944-1974
«(…) Apesar do impacto da cultura americana na minha formação e das insistências da minha família americana, só não fiquei então nos Estados Unidos por me recusar a fazer serviço militar, que me obrigaria a um estágio na Guerra do Vietname. Após o meu regresso a Portugal em finais de 1963, senti que a obsessão com as guerras coloniais tinha mergulhado o nosso país num clima de indescritível isolacionismo e histeria. Senti enorme dificuldade em falar com as pessoas da minha geração, para quem falar das minhas experiências na América era o mesmo que falar de ficção científica. Anos mais tarde, viria a notar a curiosa coincidência de Humberto Delgado, cuja campanha eleitoral tanto marcara as minhas opções políticas, também ter compreendido pela primeira vez o significado da democracia durante a sua estada nos Estados Unidos. Após a inspecção militar consegui autorização para uma viagem a Inglaterra de onde decidi não regressar a Portugal. Tinha então vinte anos e aquele país vivia um excitante período de euforia libertária e de criatividade. O governo trabalhista de Harold Wilson, de que James Callaghan era então ministro do Interior, fechava os olhos aos que se recusavam a participar na Guerra do Vietname e, no caso português, nas guerras coloniais. Embora normalmente não oficializasse a concessão de asilo político aos refractários e desertores norte-americanos e portugueses que iam chegando à Grã-Bretanha, permitia o prolongamento dos seus vistos de estada, mesmo com passaportes caducados, até que ao fim de quatro anos pudessem ser considerados residentes naquele país. No seio dos portugueses, onde proliferavam minúsculos grupos de extrema-esquerda, a única actividade democrática de relevo organizava-se então, sem exigências de rigidez político-partidária, à volta do jornalista e escritor António Figueiredo, antigo companheiro de Humberto Delgado e mais conhecido pelas suas crónicas na BBC. Pessoa muito respeitada por ingleses e portugueses em geral, foi graças à amizade que estabeleci com ele e aos seus contactos com o Labour Party que foi possível criar, em Londres, o primeiro núcleo organizado da Acção Socialista Portuguesa no estrangeiro. Mas, apesar da sua desinteressada colaboração e de se considerar socialista, António Figueiredo nunca aderiria à Acção Socialista e só entraria para o Partido Socialista após o 25 de Abril. O primeiro núcleo de Londres da Acção Socialista foi lançado no início de 1970 por mim, com Alberto Lagoa, Carlos Alves, Pedro Ferreira Almeida, Eduardo Silva e, mais tarde, Aurea Rego, José Neves e Seruca Salgado.
Em Roma estavam Tito Morais e Gil Martins, em França Mário Soares, Ramos Costa, Coimbra Martins, Liberto Cruz e, mais tarde, Jorge Campinos e, na Bélgica, Bernardino Gomes. O Fernando Loureiro vivia na Suíça e na Alemanha estavam o Carlos Novo, o Desidério Lucas do Ó, o Carlos Queixinhas e o Gomes Pereira. Em 1971 fui viver para a Suécia onde lançaria um novo núcleo com metalúrgicos da construção naval dos estaleiros da Kockums, entre os quais Mário Nobre, Armindo Carrilho e o José Matos. Estes e mais ou menos meia centena de pessoas residentes em Portugal constituíam então a totalidade do movimento socialista português embora, anos mais tarde, num sintomático gesto da grande maleabilidade histórica que tem caracterizado o Partido Socialista, a lista de fundadores fosse refeita para não ferir susceptibilidades, passando a integrar cento e onze nomes. Foi-me então atribuído o número quarenta e três, embora à data da minha adesão não existissem na ASP, que precedeu o Partido Socialista, mais de vinte elementos.
A corajosa campanha de Humberto Delgado, no final dos anos 50, criara uma grande esperança no seio da maioria dos portugueses. Era a primeira vez, desde o fim da II Guerra Mundial, que simultaneamente o ditador Salazar, o Partido Comunista e a generalidade dos portugueses verificavam ser possível substituir a ditadura por um regime pluralista, semelhante ao dos outros países da Europa Ocidental. A humilhante expulsão de Portugal de Goa, Damão e Diu em 1961e o início das lutas armadas de libertação na Guiné, em Angola e Moçambique, em simultâneo com a ignorante teimosia de Salazar em não querer compreender os ventos de mudança da descolonização, conduziriam inevitavelmente ao êxodo de dezenas de milhares de jovens portugueses para uma oposição activa à ditadura, longe do alcance da polícia política (PIDE), e ao crescente isolamento internacional do país. Por outro lado, a crescente contestação maoista ao comunismo soviético viria a pôr fim ao monopólio que o PC detinha sobre a oposição portuguesa. Existiam, finalmente, condições para o aparecimento de um partido socialista em Portugal, apesar do clima político, então dominado pela histeria do terrorismo no Ultramar, não parecer favorável à criação de estruturas organizadas. O nascimento da Acção Socialista, em 1964, representa assim um acto de grande intuição política, que só a dedicação militante de Manuel Tito Morais, a generosidade e os contactos internacionais de Francisco Ramos Costa e o conhecido optimismo de Mário Soares possibilitariam. Os ataques de que foi alvo do PC, dos inúmeros grupos de extrema-esquerda e do próprio governo, indicavam a importância que tal passo representara». In Rui Mateus, Contos Proibidos, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1996, ISBN 972-20-1316-5.

Cortesia de DQuixote/JDACT