segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Os Caçadores de Livros. Raphael Jerusalmy. «O aspecto desses livros fabricados à máquina, causa-lhe uma espécie de repugnância. É uma obra que se vende à socapa. Vem da oficina de um certo Johann Fust»

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«(…) A Santa Sé quer a todo o preço impedir esta publicação. Chartier verifica com satisfação que Villon deixa imediatamente de se servir das travessas. Do clarão vacilante das velas emana agora uma impressão de conivência entre os dois homens. Não é a penumbra do calabouço que convida a essa intimidade, mas o laço invisível de uma paixão partilhada, uma paixão viva e intensa que vem lembrar ao bispo por que motivo se digna ele a jantar com um condenado à morte: a paixão por tudo o que respeita aos livros. François apruma as costas, limpa as mãos e pega na obra que Chartier poisou em cima da toalha. Começa por lhe acariciar a encadernação, à maneira dos cegos, tacteando a textura, alisando as tranchefilas, seguindo com o dedo os pregueados do couro. Quando a abre, os olhos iluminam-se-lhe. Folheia-a com precaução. O glutão de há pouco desapareceu como que por magia, cedendo bruscamente lugar a um conviva seguro na sua postura e com gestos de entendido.
Esquecido da presença da sua eminente visita, François examina com atenção a qualidade do papel, a da tinta. Um texto latino, entrecortado aqui e ali de termos gregos, abarrota as páginas. As linhas são densas e cerradas. Os espaços exíguos entre os parágrafos mal chegam a separá-los. Sobre a vaga contínua das palavras esparze-se uma pontuação tímida. O trabalho é deselegante, como que atabalhoadamente composto. Não se trata de um manuscrito de copista de traço indolente, de caligrafia redonda, mas de um amontoado de caracteres desordenados, alinhados sem jeito, brutalmente inscritos na folha. François já viu uns quantos volumes do género nas bibliotecas das faculdades. O aspecto desses livros fabricados à máquina, causa-lhe uma espécie de repugnância.
O bispo tossica para arrancar Villon à sua contemplação. É uma obra que se vende à socapa. Vem da oficina de um certo Johann Fust, impressor em Mogúncia. François torna a poisar o livro em cima da mesa e deita a mão a uma maçã verde. Ouve a custo Chartier, cuja voz monocórdica se sobrepõe dificilmente ao estalido que os seus maxilares produzem ao triturar a polpa. O suco ácido irrita-lhe os abcessos que a dieta draconiana da prisão lhe causou. Cospe tudo o que tem na boca para o chão com um trejeito enojado. Chartier constata contristado o regresso do urso hirsuto. Villon parece agora escutá-lo com um só ouvido. O bispo retoma a sua exposição contrariado, cada vez menos persuadido do préstimo da sua visita. Mas não pode voltar da sua visita de mãos a abanar. O rei insiste em ter Villon por candidato ideal, apesar do entendimento adverso dos seus conselheiros. A maneira como Johann Fust gere os seus negócios intriga no mais alto grau a corte. Aquele impressor alemão abriu várias oficinas em pequenas povoações isoladas, na Baviera, na Flandres e no Norte de Itália. Aparenta não tirar qualquer ganho mercantil destas sucursais. E contudo, no mapa, a sua distribuição evoca um movimento militar. Que objectivo tem? De acordo com as informações obtidas, Fust perde dinheiro todos os dias. Em Mogúncia, publica bíblias e obras piedosas por encomenda, mas noutros lugares as suas prensas artesanais imprimem volumes de um género completamente diferente: antigos escritos gregos ou romanos, recentes tratados de medicina e de astronomia que só ele parece capaz de obter, sem que seja possível descobrir-lhes a proveniência.
Quem o abastece? Na cópia de A República, que Villon tinha há pouco nas mãos, Platão expõe de que modo deve a cidade ser governada. É um texto que confirma Luís XI nos seus desígnios políticos. Fortalece igualmente o estatuto da Igreja de França, desejosa de se desembaraçar do jugo apostólico. Daí a oposição de Roma. Porque se obstina Fust em publicar obras que tais, expondo-se ao risco de sofrer as fulminações da Inquisição (maldita)? François inclina-se para o lado do volume com um ar perplexo, ponderando que o seu peso é suficiente para abater o bispo. Aponta ostensivamente com o dedo as paredes húmidas da cela e, em seguida, designa o festim com um gesto arredondado da mão. Será possível uma carestia tão grande de bufos? Não se trata de denunciar o impressor, mestre Villon, mas de estabelecer cumplicidade com ele. François sorri, tranquilizado. Seria bastante ridículo recrutá-lo como denunciante. Preso e torturado várias vezes, nunca traiu um só dos seus cúmplices. A delação não faz parte do repertório dos seus numerosos vícios e pechas. Chartier abstém-se de lhe fazer semelhante injúria, servindo-lhe um magnânimo copo cheio de aguardente». In Raphael Jerusalmy, Os Caçadores de Livros, 2013, tradução de Miguel Serras Pereira, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-237-3.

Cortesia de CAutor/JDACT