sábado, 12 de setembro de 2015

A Descrição do Exército em Eurípides. Carmen Soares. «As descrições de batalha são, por conseguinte, cenas típicas de evidente inspiração homérica. Entende-se melhor essa construção de quadros mediante a repetição de itens comuns através de uma análise comparada dos diversos passos»

Cortesia de wikipedia e jdact

O choque de falanges nas falas de Mensageiros
«A guerra decide-se no choque das armas, quando os homens, actores-vítimas, medem forças e desempenham, para o bem e para o mal, o seu papel em campo de batalha. Por contraste a mulher, naturalmente arredada da acção, é uma observadora emocionada dos preparativos para o embate ou dos momentos de lazer que, esporadicamente, aos guerreiros é dado usufrir. No cuidado constante em fazer de quadros extracénicos, como são os do confronto de exércitos, momentos dramaticamente bem sucedidos, Euripides vai utilizar como seus relatores membros da comunidade guerreira. São da responsabilidade enunciativa de mensageiros-narradores homodiegéticos os quatro retratos que do choque sangrento de guerreiros nos lega a sua obra: Heraclidas 799-866; Suplicantes 650-730; Fenícias 1090-1199, 1217-1263 e 1356-1479. Para além de possuírem um porta-voz tipo, a figura do Mensageiro, todos estes passos comungam ainda da particularidade de apresentarem uma estrutura recorrente do ponto de vista temático e compositivo. As descrições de batalha são, por conseguinte, cenas típicas de evidente inspiração homérica. Entende-se melhor essa construção de quadros mediante a repetição de itens comuns através de uma análise comparada dos diversos passos. Uma vez que este trabalho já foi alvo da nossa atenção, limitamo-nos a retomar o esquema desse núcleo comum, por forma a tornar mais nítida a análise pormenorizada que se fará dos referidos momentos.
I - Preparativos: 1. sacrifícios propiciatórios; 2. disposição das tropas para combate: a) referência separada às duas frentes inimigas; b) disposição relativa das duas frentes.
II -Tentativa de evitar o confronto (para não proporcionar o derramamento de mais sangue inocente): 1. pela palavra; 2. pelo duelo;
III - Sinal de início do confronto: 1. pelo silêncio; 2. pelo som da trombeta:
IV - Confronto: 1. Manobras; 2. choque: a) l º embate; b) 1ª exortação à luta; c) embate; d) 2ª exortação à luta; 3. desfecho: a) vitória de uma parte e derrota da outra; b) aristeia e/ou androktasia de um guerreiro;
V - Comportamentos pós-batalha: evita-se o saque e recolhem-se os mortos para lhes prestar honras fúnebres; agradecimento à divindade pela vitória, erguendo um troféu de guerra a Zeus; despojar dos inimigos; recolher dos corpos para posterior prestação de honras fúnebres.
VI - Sentença final: a funcionar como moralidade ao relato acabado de fazer (a inconstância da fortuna; elogio da sophrosyne e condenação da hybris.
Estas longas falas têm uma motivação textual e factual que as torna naturais no contexto do teatro. Sob o ponto de vista discursivo elas são sempre antecedidas por um diálogo do mensageiro com outra personagem, através do qual se apresenta o assunto das mesmas. O factor suspense inerente ao relato de qualquer evento não presenciado, não reside, pois, nos factos em si, mas no modo como é apresentada a sua concretização. Uma vez que o espectador conhece a lenda mas ignora a forma como Eurípides dela se apropria, estes relatos funcionam como um factor de aumento de dramatismo. O mensageiro encontra a necessidade da sua fala explicativa num claro pedido do interlocutor para uma narrativa pormenorizada dos acontecimentos acabados de enunciar. Conhecer é um acto visivo; não chega saber, é preciso ver, nem que seja através dos olhos de outrem.
A linha condutora da nossa reflexão estará na modulação técnico-compositiva e estilística colocada pelo poeta nestes trechos de natureza predominantemente informativa. Aspirando sempre a seduzir o público para um espectáculo sem dúvida doloroso, mas capaz de fazer apelo a uma diversidade de sentimentos (entusiasmo, empatia, repulsa, admiração ou pena-sofrimento), o poeta procura transformar uma fala a priori fadada à monotonia num momento de variatio discursiva e sinestésica. Para essa vivacidade do texto muito contribuem a compresença e alternância do discurso directo com o indirecto, a variedade de tempos e modos verbais, a emergência do eu-emissor e do tu-destinatário (factores por excelência da personalização do texto). Num relato cuja longa extensão pode funcionar como elemento de dispersão, de todos os artifícios técnico-compositivos os apelos explícitos ao destinatário e o uso da interrogativa retórica são os que têm uma capacidade mais imediata de despertar o ouvinte. Por se tratar de passos extensos e que exigem uma reflexão relativamente demorada, não nos é possível apresentar o estudo dos quatro passos em conjunto. Abordamos agora as falas de Heraclidas e Suplicantes, pertencentes à mesma peça {Fenícias), e, portanto, com mais afinidades entre si.

Heraclidas 799-866.
Já se encontra disposta frente a frente e pronta para o combate a infantaria dos dois exércitos, quando Hilo avança para o meio do campo de batalha. A descrição faz-se, segundo uma técnica cinematográfica tão do agrado do poeta, partindo do geral para o particular. Após um grande plano do objecto descrito, o campo de batalha, o sujeito da enunciação centra o seu foco num agente individual, o Heraclida. Note-se a preocupação cénica do narrador em fornecer coordenadas espaciais capazes de funcionar como didascálias de um quadro apenas oferecido à imaginação do seu auditório: nós colocámo-nos uns de frente para os outros; Hilo desceu da sua quadriga e pôs-se de pé no meio dos dois exércitos». In Carmen Soares, A Descrição do Exército em Eurípides, O Choque de Falanges nas falas de Mensageiros, Revista Humanitas, volume XLIX, 1997, Universidade de Coimbra.

Cortesia da UCoimbra/JDACT