quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Elogio do Silêncio. Marc Smedt. «… uma tal força de inércia, que o silêncio cedo retomava o seu papel preponderante. A neve favorece o silêncio, transporta-o por entre os sons que primeiro destaca, e depois engole»

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Os estados do silêncio
«(…) Tantos silêncios! Existe também o da esfinge, o silêncio dos perfumes, odores e cores, o silêncio da cerimónia do chá, o silêncio da noite e dos sonhos, o silêncio de cada gesto. O silêncio das estações e dos seus dias. O silêncio é tão importante como respirar. E, de qualquer modo, tão essencial como o sono. Ao escrever estas linhas, a aurora ergue-se sobre uma paisagem de neve. Branca, ela ilumina a noite com um brilho único, tingindo-se lentamente com as cores do amanhecer. Ao levantar-me por volta das cinco, senti de imediato um silêncio acolchoado. E, ao olhar pela janela, não fui surpreendido pela sua presença. A neve irradia na verdade um ambiente que não se assemelha a mais nada. Abafa os sons. A neve poisa no espaço, invade-o, metamorfoseia-o. Ela é pura poesia, na sua alvura. Ela irradia calma. Neve.
É antes de mais uma imagem, um prazer infantil. Uma imagem de um livro ilustrado, um conto de Inverno no qual era agradável encontrar refúgio. Todos nós devemos ter uma lembrança semelhante, a de uma casa com o telhado nevado, sabem, aqueles tectos pesados com uma tal espessura de neve que esta os cobre totalmente com as agulhas de gelo que pendem do algeroz escondido e as árvores em volta, fantásticas formas vestidas de branco. Vivi durante a minha infância dez anos na Turquia, em Ancara, a cidade situada num planalto a mil metros de altitude. De Dezembro a Fevereiro vivíamos debaixo de uma camada de pelo menos um metro de neve, até começar um degelo brutal e uma Primavera quente se começar a fazer sentir. Os meus primeiros deslumbramentos com a neve datam dessa altura e, graças à importante colónia americana ali se encontrava, os bonecos de neve com olhos de carvão, gorro de caçarola e nariz de cenoura cruzaram-se de imediato com o rico folclore de Walt Disney, do qual eu me tornei, como os meus pequenos camaradas americanos. Ninguém melhor do que ele soube glorificar a magia da neve. E os contos eslavos da minha mãe contribuíram para o feitiço que sempre experimentei face a este pó gelado. Para mim, o Natal também se liga ao Christmas anglo-saxónico, e o maravilhoso silêncio que reinava na casa, de manhã, antes de ir procurar os presentes debaixo do grande pinheiro decorado com bolas multicolores e velas verdadeiras, ô Tunnenbaum, continua a ser o mais belo do mundo. Foi certamente aí, enquanto criança, que percebi o silêncio de maneira intensa, que descobri a sua imensidão e a sua força. Na madrugada de cada Natal.
Com os rigores dos Invernos, vinham os lobos rondar as habitações e o bairro residencial, que se situava numa colina com vista sobre a cidade, ao lado dos campos. Julguei ouvir muitas vezes os lobos esfaimados uivarem, errando sobre a vastidão gelada. Mas a neve tem uma tal força de inércia, que o silêncio cedo retomava o seu papel preponderante. A neve favorece o silêncio, transporta-o por entre os sons que primeiro destaca, e depois engole. Também gosto da neve que cai. É menos silenciosa que a paisagem de neve, emitindo sempre uma espécie de rumor, um rugido suave, ouvimo-la cair quase sem a escutar. Mas este pedaço de céu que se desfaz em flocos brancos isola-nos do mundo e dos seus ruídos. A neve é silêncio branco. Passámos alguns dias a esquiar. O prazer de deslizar sobre a neve em direcção aos abismos das montanhas imaculadas que se recortam no céu azul-vivo. Descendo a encosta, de frente para elas, quase sozinho na pista naquele Março profundo, existe apenas o som de ripas tecendo trilhos na neve fresca, chiar que nada mais faz do que realçar o grandioso silêncio daquelas montanhas geladas. Somente um pássaro lança um brado, de vez em quando, ao cruzar o azul». In Marc Smedt, Elogio do Silêncio, 1986, Sinais de Fogo Publicações, tradução de Sérgio Lavos, colecção XIS (livros para pensar), Público, 2003, ISBN 989-555-029-4.

Cortesia de Público/JDACT