segunda-feira, 21 de setembro de 2015

A Filha do Barão. Célia C. Loureiro. «A mãe adormeceu no primeiro quarto de hora, de boca deselegantemente aberta, e pôs-se a soltar uma respiração ruidosa que muito a distraía dos seus pensamentos. Não despertara sequer quando, antecedido de um ‘lá vai água’»

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1805 - 1806
«(…) Como a ordem do patriarca eta para cumprir, Mariana voltou ao seu lugar dentro da berlinda, de frente para a mãe, e apoiou os pés no tijolo que lhe fora designado. Nuna, que lhe sorria compreensivamente, viajaria no interior da carruagem, com as outras mulheres. Seria de uma extrema crueldade obrigá-la a enfrentar o frio do exterior seguindo ao lado do cocheiro. As outras três criadas tinham sido entretanto chamadas da cavalariça, ligada à rua por um pequeno pátio. Tinham-se posto aos cochichos desde a notícia da partida. Aida chorara por causa do seu namorico tolo com o açougueiro, Gracinda guinchara de excitação assim que se apanhara sozinha e Maria uivara de dor por causa dos pais, tudo convenientemente afogado no isolamento da copa, por entre selhas de roupa para tingir e tinas de água fumegante. Seguiriam num veículo mais pequeno e menos seguro, conduzido por um cocheiro mais velho, que trabalhara para o pai de João, e que tinha a incumbência de ficar com elas no Douro. João contrataria outro cocheiro para substituir o jovem e robusto Jaime, prematuramente desdentado, que conduziria as suas preciosidades até ao Porto. Seria uma brutalidade exigir que o velho Moisés regressasse com a carruagem, que ia carregada com os pertences das fidalgas. O velho apartar-se-ia da única filha, que vivia com o traste do marido sobre uma taberna, e findaria os seus dias nos socalcos das vinhas a norte. A tristeza era-lhe tamanha que respirava pesadamente, como se escorregasse já para uma morte solitária.
Pegou nas rédeas e esperou, pacientemente, que Jaime recebesse a ordem de avançar com o primeiro veículo. Mais adiante, quando sairdes de Lisboa, deixai o Moisés seguir à frente. Desse modo evitais emboscadas para as senhoras, entendeis? Sim, vossa graça. O resto da criadagem exibia-se alinhada na soleira que dava para o pátio, com as mãos enroladas nos aventais devido ao frio, e acenavam às senhoras da casa. Tudo perderia agora o seu encanto. Seriam serviçais de um enfermo. Com uma palmada na lateral do veículo, João virou o rosto às lágrimas que Sofia se esforçava por esconder atrás de um delicado lenço de linho bordado e à expressão pasmada de Mariana, que não interiorizara realmente que não voltaria a ver o pai. Os seus olhos assustados poderiam ser a última coisa que veria dela.
Quase três horas depois, à saída de Lisboa, a atrelagem de quatro cavalos conduzida por Moisés passou-lhes à frente e a sua carcaça de madeira preta com motivos dourados vegetalistas passou a ser o seu ponto de referência durante as desconfortáveis horas que se seguiram. Nem o veludo negro que forrava o transporte tornava o bambolear da caixa menos incomodativo. A mãe adormeceu no primeiro quarto de hora, de boca deselegantemente aberta, e pôs-se a soltar uma respiração ruidosa que muito a distraía dos seus pensamentos. Não despertara sequer quando, antecedido de um lá vai água, um jacto caiu ruidosamente sobre o tejadilho do veículo ao passar por uma rua do Rossio, escorrendo em seguida pelo vidro onde a mãe tinha o rosto encostado sem a sobressaltar. Parecia que Sofia arranjava sempre forma de se imiscuir na sua liberdade, quer fosse impedindo-a de descer a escadaria de madeira maciça da sua casa à velocidade que pretendia, porque podia partir o pescoço e o seu casamento tornar-se-ia estéril, quer fosse porque queria pôr as ideias em ordem e a senhora delicada e de trato impecável que se apresentava nas reuniões sociais punha-se a ressonar como um velho pescador ao sol. Observou-lhe as mãos cruzadas no regaço e os pés abotinados, pousados no tijolo que esfriara há muito. Sabia que, nesse primeiro dia, teriam de se acomodar como pudessem. No segundo dia seriam recebidas por uma prima, no Buçaco. Melancólica, enregelada e vazia por dentro, por se ter separado não só
do pai como de Lisboa, quis que o sono a tomasse com felicidade com que fizera a mãe sucumbir-lhe. Doía-lhe o peito devido ao aperto do espartilho, ainda que a sua mãe tivesse sofrido muito mais na juventude, quando o mesmo tinha tantos cordões que era praticamente impossível que uma mulher respirasse. O seu olhar, contudo, não conseguia desviar-se da carta que o pai entregara a Sofia e que se insinuava na sua sacola de mão. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria acesso àquelas palavras e, sem mais, estendeu a mão agilmente e cingiu o papel nos dedos. Com um único olhar dirigido à mãe, que se contorcia num sono atribulado, abriu a folha que o pai dobrara e depositara num envelope». In Célia Correia Loureiro, A Filha do Barão, 1809, Marcador Editora, 2013/2014, ISBN 978-989-754-039-4.

Cortesia de MarcadorE/JDACT