quinta-feira, 10 de setembro de 2015

A Alma das Pedras. Paloma Sanchez-Garnica. «Havia já alguns dias que pensava recolher-se a um lugar tranquilo para meditar sobre o caos em que se encontravam os territórios da diocese, sujeitos à ameaça constante dos normandos, por mar, e dos sarracenos, que nada respeitavam»

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Ano da Era do Senhor de 824. A origem de tudo
«(…) É como se centenas de velas iluminassem aquele lugar específico. É um facto milagroso, senhor, não pode ser coisa natural! Além disso, há também o meu sonho sobre o túmulo de S. Tiago Maior... Bem, bem, interpôs Teodomiro, com um gesto enérgico da mão, não ponhamos o carro à frente dos bois, Paio. Os sonhos são apenas isso..., sonhos, e não têm necessariamente significados racionais. Paio aprestava-se a responder, mas o escrivão fez-lhe sinal para que se mantivesse em silêncio. O eremita respeitou-o recuou prudentemente alguns passos e, adoptando uma atitude submissa, aguardou pacientemente a decisão do bispo. Observou atentamente a cabeça do ministro da Igreja, coberta por um barrete algo deteriorado pelo uso. Tinha as orelhas grandes e brancas como o resto da pele e os olhos pequenos e brilhantes, de uma cor obscura, quase negra, o que lhe proporcionava um olhar intenso e difícil de sustentar. O bispo permaneceu pensativo, com a expressão perdida nas suas reflexões, e Paio pensou que o clérigo voltaria a despachá-lo com palavras simpáticas, no sem antes lhe dar algo para meter no estômago. O eremita cruzou então as mãos sobre o peito e sussurrou uma oração. Está bem, disse a voz ténue do bispo arrancando-o à sua reza. Iremos ao bosque de Libredón para comprovar o que dizes, Paio. Martín, chamou, levantando-se decidido e voltando-se para o escrivão, prepara tudo para a partida. Vamos verificar o que vêem os olhos deste bom homem.
Já anoitecia quando o cortejo chegou à clareira do bosque onde se erguia a cela do eremita. O céu encontrava-se quase limpo e um manto de estrelas começava a engalanar a escuridão do firmamento com pequenos pontos de luz. É ali, senhor. Segui-me, rogo-vos. Paio indicou o lugar ao bispo, que o seguia no seu cavalo negro como azeviche, cuja pele brilhava à luz do crepúsculo. A comitiva tinha-se detido à porta da choupana que servia de morada a Paio. Os outros desmontaram cansados e conscientes de que lhes tocaria dormir no chão. Teodomiro não desmontou e moveu as rédeas para que o animal seguisse os passos de Paio que se afastava com o braço estendido para diante, apontando o local exacto aonde queria chegar. É aqui. Paio voltou-se e esperou pelo bispo. O cavalo avançava devagar, manifestando a mesma insegurança que o seu dono. Quando chegou ao pé do eremita, o bispo olhou em redor sem dizer nada.
Comprovai vós mesmo que o que eu vos dizia era verdade, Eminência. Atento à reacção do bispo, as palavras saíram-lhe balbuciantes. Paio, é certo que, neste lugar as estrelas se vêem mais claramente... Porém, não vejo nisto nenhum milagre. Há que observar com os olhos da fé... Estás a dizer-me que não tenho fé suficiente para distinguir as obras de Deus dos embustes dos farsantes?! Não é minha intenção ofendê-lo, senhor, murmurou o eremita, curvando-se cabisbaixo, em sinal de respeito, apenas lhe rogo que prepare o espírito para receber a mensagem de Deus. O bispo Teodomiro suspirou, cansado. Tinha cavalgado durante toda a tarde, as suas costas ressentiam-se do esforço e encontrava-se algo enjoado.
Talvez tenhas razão, retorquiu, sussurrando pensativo. É melhor preparar o meu espírito. Farei três dias e três noites de jejum para saber se Deus Nosso Senhor pretende manifestar-nos algo relacionado com este lugar. Preciso desse jejum para limpar o corpo e a alma. Havia já alguns dias que pensava recolher-se a um lugar tranquilo para meditar sobre o caos em que se encontravam os territórios da diocese, sujeitos à ameaça constante dos normandos, por mar, e dos sarracenos, que nada respeitavam. Os fiéis reclamavam-lhe uma solução para devolver a tranquilidade às famílias que, com grandes dificuldades, mantinham uma fé frágil. Tinha de encontrar alguma forma de lhes transmitir a certeza de que não tinham sido abandonados por Deus nem pela própria Iqreja, que parecia alheia a todo o seu sofrimento, às mortes e às suas perdas de possessões. Mas o que poderia ele fazer, o pobre bispo de Iria Flavia, naquela terra considerada o fim do mundo, uma terra com a qual se havia desentendido o resto da cristandade? Tinham-lhe chegado notícias de que o rei Afonso havia pedido ajuda ao imperador franco para deter o avanço imparável dos infiéis e rechaçar os seus ataques, mas esses eram assuntos de carácter político, questões de guerra e de defesa do território que tinham a ver com a garantia da segurança dos habitantes do reino.
Teodomiro sabia que sob o seu amparo estavam os fiéis da sua diocese, por cujos espíritos tinha de velar, mantendo viva a chama da fé e da esperança. Por esse motivo,  decidiu orar enquanto se submetia a um jejum voluntário de três dias naquele lugar tranquilo, afastado de todos os problemas quotidianos e terrenos da diocese, com o objectivo de, assim, preparar a mente e o espírito para ouvir a Deus, caso este se apiedasse dele e fizesse por bem aclarar os seus pensamentos confusos. Depois de despachar a maior parte dos homens que o tinham acompanhado na comitiva, ordenando-lhes que voltassem à sede episcopal de Iria, ficou apenas com a companhia de Martín e de uma guarnição composta por três soldados, suficiente para a sua protecção. Iniciou o jejum naquela mesma noite». In Paloma Sanchez-Garnica, A Alma das Pedras, tradução de Miguel Coutinho, Saída de Emergência, 2010, ISBN 978-989-637-288-0.

Cortesia SEmergência/JDACT