quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O Capitão Nemo e Eu. Álvaro Guerra. «O suor arrefece no meu corpo. Acabei de ver as três rodas com impressionante nitidez, a do meio girava velozmente no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio e as outras duas estavam imóveis…»

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Sono. Sonhos
«(…) À porta, que lentamente se abre, surge a enfermeira empurrando uma silenciosa mesa de rodas que ostenta os seus hemisférios de metal cromado a reflectir as imagens do universo debaixo da miniatura espectral da enfermeira dentro do minúsculo quarto oval, aparecem o peito de frango, fumegante, o arroz de manteiga, a canja, o pêssego, o sumo de laranja. Tenho apetite e reconheço os meus gostos. Ouço que estou com melhor parecer e que preciso de fazer a barba. Do meu rosto nem um traço. Esqueci o que era possível esquecer e prolongo este momento até aos limites da minha vontade. Tarde ou cedo, surgirá um espelho, e eu nele. Um espelho... Outra recordação... Dormito, imóvel e obediente, e desse levíssimo sono regresso, três dias, três horas, três séculos, são noções cujo rigor me não interessa, porque neste desinteresse está a suspeita de uma outra memória, da minha vontade e da esperança insensata; entrevejo o esboço de uma cópula e de uma guerra e não sei qual durou mais, mas obrigo-me a optar, e escolho a cópula, encerrado na minha fortaleza branca de doente.
Vem o médico. Toma-me o pulso e fala. Respondo sem aplicação, por delicadeza. Sou, portanto, bem-educado, tenho uma família que se ocupou de mim, da minha instrução, e me preparou para a vida... Para ver o primeiro cadáver tive que me pôr em bicos de pés e espreitar para dentro do caixão: era uma velhinha mirrada, uma tia de oitenta anos a quem tinham tirado a dentadura e que estava em frente do altar, aconchegada entre flores e com um crucifixo entre as mãos; o cheiro da cera e do pólen fez-me espirrar e outra tia, com menos quarenta anos que a defunta, assoou-me a um lenço branco; todas as mulheres da família e as suas melhores amigas estavam sentadas à volta do caixão e suspiravam ou fungavam; todos os homens da família e os seus melhores amigos estavam na sacristia e falavam em voz baixa do preço do trigo e da guerra na Alemanha...
O suor arrefece no meu corpo. Acabei de ver as três rodas com impressionante nitidez, a do meio girava velozmente no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio e as outras duas estavam imóveis; todas brilhavam e eram feitas de metais diferentes. Acho que não se tratava de um sonho e que há alguma coisa na memória que não é possível violar; na verdade, existe muito viva em mim a recordação de tudo o que não fiz, de tudo o que não criei, uma herança infinitamente mais vasta do que a possibilidade de a esquecer e me transforma numa ínfima partícula fechada na humilde casca de uma realidade adiada, eternamente. Agora, não só conheci as três rodas do Labirinto da Fortuna, de Juan Mena, a roda imóvel do passado, a roda girando do presente e a roda imóvel do futuro, coisas que assim deixaram de ser meros símbolos. Eu julgava que o homem já tinha feito Deus à sua imagem e semelhança mas afinal, Deus não está ainda feito, nem estará nunca, ele é esta tarefa interminável e constante. Mas onde é que descansa? Senhor, responde Marcel, descanso na Providência, Mas não consigo lembrar-me de onde saiu esta ironia». In Álvaro Guerra, O Capitão Nemo e Eu, Crónica das horas aparentes, Publicações dom Quixote, 1973, 2000, ISBN 972-201-828-0.

Cortesia de BN/PdQuixote/JDACT