segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Cartago e o Pesadelo da República Romana. Aníbal. Robert O’Connell. «… pois Roma conseguira sempre responder, conseguira sempre sair das cinzas da história e continuar em frente. E era mais na derrota do que na vitória que Políbio via a essência da grandeza de Roma»

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Vestígios de Guerra
«Políbio de Megalópolis, a partir de um desfiladeiro nos Alpes italianos, olhou para baixo e avistou as ricas e verdes planícies da Lombardia. Foi a mesma vista convidativa que setenta e três anos antes Aníbal mostrara ao seu exército meio esfomeado, meio enregelado e completamente desanimado, encorajando-o a manter o rumo no que viria a revelar-se um incríve1 caminho de conquista. Muito provavelmente, mantinham-se visíveis vestígios suficientes daquela tropa cansada para Políbio ter a certeza de estar no sítio certo; uma certeza negada por cronistas futuros, dando azo à uma das controvérsias mais duradouras e fúteis de toda a história antiga: onde exactamente atravessou Aníbal os Alpes? Políbio, por seu lado, estava livre para se concentrar em questões que considerava mais importantes. Tinha como objectivo, um esforço que acabaria por preencher quarenta livros, explicar aos seus compatriotas gregos como uma até então obscura cidade-estado na península itálica veio a dominar, praticamente no curso de uma vida, todo o mundo mediterrânico. Mas se Roma estava no centro das investigações de Políbio, Aníbal e Cartago eram a sua atracção. Cada um à sua maneira esteve perto de destruir as ambições romanas. Ambos, por esta altura, estavam mortos, obliterados por Roma, mas foram os desafios que eles lançaram e os desastres que infligiram que Políbio considerou ser mais atractivo. Não importava quão más as coisas se tornavam, pois Roma conseguira sempre responder, conseguira sempre sair das cinzas da história e continuar em frente. E era mais na derrota do que na vitória que Políbio via a essência da grandeza de Roma.
Canas foi o auge. A 2 de Agosto de 216 a. C., um terrível e apocalíptico dia no sul de Itália, 120 000 homens envolvidos no que acabou por ser uma enorme luta de espadas. No fim da contenda, pelo menos 48 000 romanos estavam mortos ou moribundos, estendidos em poças do seu próprio sangue, vómito e fezes, mortos das formas mais incríveis c terríveis, com os membros arrancados, os rostos, peitos e abdómenes perfurados e mutilados. Assim foi Canas, um evento celebrado e estudado enquanto paradigma de Aníbal para futuros praticantes das artes militares, a apoteose da vitória decisiva. Roma, por outro lado, perdeu, sofrendo nesse dia mais baixas que os EUA durante toda a guerra no Vietname, mais baixas que qualquer outro exército ou qualquer dia da batalha em toda a história militar ocidental. Pior ainda, Canas culminava uma série de derrotas engendradas pelo próprio Aníbal, personificação do castigo merecido infligido a Roma, que atacaria a Itália por mais treze anos, derrotando exército atrás de exército e general atrás de general. Contudo, nada disto teria comparação com aquela terrível tarde de Agosto.
Tem-se defendido que Políbio, consciente da enorme importância simbólica de Danas, estruturou deliberadamente e sua história para fazer com que a batalha parecesse o absoluto ponto mais baixo da fortuna romana, daí exagerar na sua importância. Porém, os números totais não só defendem o contrário, como também nesse dia Roma perdeu uma parte significativa dos seus líderes, entre um quarto e um terço do Senado, cujos membros se mostravam ansiosos por estar presentes no que se pensava vir a ser um grande triunfo. Ao invés, foi um total fracasso, tanto assim que é possível provar que a Batalha de Canas foi ainda mais decisiva do que Políbio acreditava ter sido. Em retrospectiva, trata-se de um ponto crucial na história de Roma. É indiscutível que os acontecimentos desse mês de Agosto ou começaram ou aceleraram a tendência de empurrar Roma da municipalidade para o império, da oligarquia republicana para a autocracia, da milícia para o exército profissional, de um reino de donos de terras para um reino de escravos e propriedades. E, o talismã de todas estas mudanças foi um sobrevivente sortudo, um jovem tribuno militar chamado Públio Cornélio Cipião, conhecido na história com a alcunha de Africano, visto que ao fim de muitos anos de guerra, Roma ainda precisaria de um general e de um exército suficientemente bons para derrotar Aníbal, e Cipião Africano, com a ajuda do que restava dos refugiados desonrados no campo de batalha, atenderia à chamada e poria tudo em marcha». In Robert O’Connell, Cartago e o Pesadelo da República Romana, 2010, tradução de Dinis Pires, Bertrand Editora, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-252-419-3.

Cortesia de BertrandE/JDACT