sexta-feira, 18 de setembro de 2015

A Rainha Estrangulada. Maurice Druon. «Tudo estava previsto nas defesas desse gigantesco modelo de arquitectura militar: os assaltos, os ataques frontais ou circulares, as investidas, as escaladas, os cercos, tudo, menos a traição. Sete anos mais tarde, o castelo caía nas mãos de Filipe…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«No dia 29 de Novembro de 1314, duas horas após as vésperas, vinte e quatro cavaleiros trajados de preto, com as armas da França, passaram a galope pela porta do castelo de Fontainebleau e mergulharam na floresta. As estradas estavam juncadas de neve, o céu, mais escuro que a terra; já era noite; melhor dizendo, por causa de um eclipse solar, a noite anterior continuava. Os vinte e quatro cavaleiros não repousariam antes do amanhecer, e galopariam ainda durante todo o dia seguinte e por outros mais, para Flandres, para Angoumois e a Guyenne, para Dôle en Comté, para Rennes e Nantes, para Toulouse, para Lyon, Aigues-Mortes, acordando bailios, prebostes e senescais, para anunciar, em cada cidade ou povoação do reino, que o rei Filipe IV, o Belo, acabava de morrer. À sua passagem, os sinos punham-se a dobrar nas trevas; uma grande onda sonora, sinistra, alargava-se sem cessar, estendendo-se até atingir todas as fronteiras. Após vinte e nove anos de um governo sem fraqueza, o Rei de Ferro morria, com quarenta e seis anos, de uma congestão cerebral, enquanto um eclipse solar lançava uma sombra espessa sobre a França. Verificava-se, assim, pela terceira vez, a maldição lançada no meio das chamas, oito meses antes, pelo grão-mestre dos templários. Soberano tenaz, altivo, inteligente e discreto, o rei Filipe preenchera tão bem o seu reinado e dominara de tal forma o seu tempo que se tinha a impressão, aquela noite, de que o coração do reino parará de bater. As nações, porém, jamais desaparecem com a morte dos homens, por maiores que estes sejam; o seu aparecimento e seu fim obedecem a outras causas. O nome de Filipe, o Belo, só seria iluminado, na noite dos séculos, pelo clarão das fogueiras que ele havia acendido sob seus inimigos e pela cintilação das moedas de ouro que mandara cunhar. Esqueceriam logo que ele amordaçara os poderosos, mantivera a paz o quanto possível, reformara a legislação, construíra fortalezas para que se pudesse semear ao abrigo do perigo, unificara as províncias, exortara os burgueses a se reunirem para lhe dar conselhos e velara, em todas as coisas, pela independência da França.
Assim que suas mãos gelaram, assim que aquela grande vontade se extinguiu, os interesses privados, as ambições frustradas e as sedes de honrarias e de dinheiro se desencadearam. Dois partidos iriam defrontar-se e destroçar-se sem piedade pela posse do poder: de um lado, o clã da reacção baronial, conduzido pelo conde de Valois, imperador titular de Constantinopla e irmão de Filipe, o Belo; de outro, o clã da alta administração, dirigido por Enguerrand de Marigny, primeiro-ministro assistente do falecido monarca. Para evitar esse conflito, que fermentava há meses, ou para arbitrá-lo, seria preciso um rei de pulso. Ora, o príncipe de vinte e cinco anos que subia ao trono, monseigneur Luís, já rei de Navarra, parecia mal dotado para reinar; chegava ao poder precedido pela reputação de marido enganado e pelo triste cognome de Turbulento. Sua esposa, Margarida de Borgonha, a mais velha das princesas da Torre de Nesle, encontrava-se aprisionada por adultério, e sua existência iria, curiosamente, servir de prémio para as duas facções rivais. As consequências da luta, entretanto, como sempre, recairiam sobre a miséria dos que, nada possuindo, não podiam nem mesmo sonhar... O inverno de 1314-1315 foi, além disso, um Inverno de fome.

A Aurora de um Reino. As prisioneiras do castelo Gaillard
Plantado a seiscentos pés de altura sobre um monte gredoso, acima da povoação do Petit-Andelys, o castelo Gaillard dominava, mandava em toda a Alta Normandia. O Sena, naquele lugar, descreve uma grande curva nos terrenos férteis; o castelo Gaillard vigiava o rio em dez léguas, tanto a jusante como a montante. Ainda hoje as ruínas dessa formidável cidadela fascinam o olhar e desafiam a imaginação. Com o Krak des Chevaliers, no Líbano, e as torres de Rumeli-Hissar, no Bósforo, este é um dos grandes vestígios da arquitectura militar da Idade Média. Diante desses monumentos, construídos para firmar conquistas ou ameaçar impérios, o espírito começa a sonhar com os homens de quem apenas quinze ou vinte gerações nos separam: foram eles que edificaram tais fortalezas, delas se serviram, aí viveram e as destruíram. Na época de que tratamos, o castelo Gaillard não tinha mais que cento e vinte anos. Ricardo Coração de Leão mandou construí-lo, desprezando os tratados, para desafiar o rei da França; vendo-o terminado, erguido sobre a escarpa, inteiramente branco na pedra talhada de fresco, com assuas duas séries de muralhas, suas fortificações, suas grades, suas ameias, suas treze torres, seu grande torreão de dois andares, teria exclamado: Ah! Aí está um castelo bem galhardo! E o edifício recebeu assim seu nome.
Tudo estava previsto nas defesas desse gigantesco modelo de arquitectura militar: os assaltos, os ataques frontais ou circulares, as investidas, as escaladas, os cercos, tudo, menos a traição. Sete anos mais tarde, o castelo caía nas mãos de Filipe Augusto, ao mesmo tempo que este usurpava ao soberano inglês o ducado da Normandia. Desde então o castelo Gaillard deixou de ser praça de guerra; servia apenas de prisão real. Lá eram aprisionados alguns criminosos de Estado, que o rei tinha interesse em conservar vivos, sem nunca lhes restituir a liberdade. Quem ultrapassasse a ponte levadiça do castelo Gaillard não teria mais oportunidade de rever o mundo. Os corvos, durante o dia todo, crocitavam sob os telhados e, à noite, os lobos vinham uivar junto às muralhas. E o único passeio dos prisioneiros consistia em ir à capela, onde ouviam missa, para voltar à torre, onde esperavam a morte. Naquela derradeira manhã de Novembro de 1314, o castelo Gaillard, suas muralhas e sua guarnição de arqueiros eram utilizados apenas para guardar duas mulheres, uma de vinte e um anos, outra de dezoito, Margarida e Branca de Borgonha, duas primas, ambas casadas com filhos de Filipe, o Belo, julgadas por adultério cometido com jovens escudeiros, e condenadas à prisão perpétua, após o mais retumbante escândalo que explodiu na corte francesa. A capela localizava-se no interior da segunda muralha. Por se erguer sobre a própria rocha, era fria e sombria; as paredes tinham poucas aberturas e nenhum ornamento. Apenas três cadeiras havia no coro, duas à esquerda, para as princesas, e outra à direita, para o comandante da fortaleza.
Ao fundo, os homens de armas conservavam-se de pé, alinhados, com o mesmo ar de tédio que tinham quando iam trabalhar na corveia da forragem. Meus irmãos, disse o capelão, precisamos hoje elevar nossas preces com grande fervor e maior solenidade. Clareou a voz, hesitou um instante, como se a importância do que ia anunciar também o perturbasse. O Senhor Deus acaba de chamar a si a alma de nosso bem-amado rei Filipe. E isto é causa de profunda piedade por todo o reino. As duas princesas voltaram-se uma para a outra, com os seus rostos fechados em coifas de grossa e áspera tela. Que aqueles que o injuriaram ou maldisseram façam penitência em seus corações, continuou o sacerdote, e que todos os que lhe tiveram rancor na vida implorem para ele a misericórdia da qual todo homem que morre, grande ou pequeno, tem igual necessidade diante do tribunal de Nosso Senhor. As duas princesas, de joelhos, baixavam a cabeça para ocultar a sua alegria. Não sentiam mais frio, nem sua angústia ou miséria: uma imensa onda de esperança crescia nelas, e se tivessem a ideia de se dirigirem a Deus seria para agradecer-lhe por havê-las livrado de seu terrível sogro. Após sete meses de prisão naquele castelo, era essa a primeira boa nova que o mundo lhes enviava». In Maurice Druon, A Rainha Estrangulada, tradução de Alcântara Silveira, Editora Marcador, 2014, ISBN 978-989-754-077-6.

Cortesia de EMarcador/JDACT