sábado, 12 de setembro de 2015

Corrector de Erasmo. António Luís. Américo Costa Ramalho. «Verificou-se que a letra parecia de castelhano e foi interrogado o capelão da rainha dona Catarina, licº Rodrigo Sánchez, castelhano, que não confirmou que a letra fosse de alguém nascido em Castela»

Cortesia de wikipedia

«O licenciado António Luís é mal conhecido e faz falta um estudo sobre a sua formação e actividade como professor, investigador, cientista e filósofo. A primeira condição para isso será a tradução da sua obra. Não digo apenas leitura por alto do seu latim, nem sempre fácil, mas a tradução publicada, com o latim em face, para que possa ser apreciada e discutida. Sem esta medida prévia, tudo quanto continuar a ser escrito sobre António Luís, não passará de glosa inútil sobre o que está dito. Alguns flagrantes da sua personalidade e hábitos podem colher-se do Auto q se fez sobre o ldo ant° luys xpão nouo mor a sã giã desta cidade de lixboa pso por ter liuros em hebraico 1539 mdo soltar. Este Auto, cuja leitura foi feita pelo Mário Brandão, foi publicado por iniciativa de Joaquim Carvalho. Recordemos. Foi o caso que nas portas de algumas igrejas de Lisboa, como a Sé e a igreja do convento do Carmo, apareceu uma carta de controvérsia judaica na qual se declarava, entre outras coisas, que o Messias ainda não tinha chegado. Verificou-se que a letra parecia de castelhano e foi interrogado o capelão da rainha dona Catarina, licº Rodrigo Sánchez, castelhano, que não confirmou que a letra fosse de alguém nascido em Castela.
Procurava-se um culpado, quando a senhoria do licº António Luís resolveu denunciá-lo, dizendo q hu ant° lujs filho de mtre lujs fysiquo que viue nas costas da egreia de sã giã... auya perto de dous anos pouco mais ou menos q treladaua certos liuros -s- briuya de [grego] latym ë lingoajë. & certos textos q elle dizia a ella testemunha. O marido da denunciante, proprietária da casa onde vivia António Luís, era iluminador, e a ele recorria o médico para lhe aguçar as penas de que se servia para escrever. Por isso, ela esclarece: & q hos mais dos domingos & dias santos pncipais pella menhã jazendo ella testa  Ajnda na cama e dito seu marjdo trazia o dto antº lujs penas haparar ao dto seu marjdo. & papell a Regrar que lhe durauã pera toda a somana espver.
Toda a denúncia da mulher do iluminador, além de pitoresca, é extremamente elucidativa. Ela submete o licº António Luís a quem dava tratamento de filho, prova indirecta de que era ainda novo, a um interrogatório de beata coscuvilheira e desconfiada. Eis como ela caracteriza o seu inquilino: & q o dto antº lujs se nomeaua p philosopho e grade letrado. & q ella testemunha dissera ao dto Id0 aos domigos & festas quãdo vynha a Regrar o papell & q lhe aparase as penas q fora mtas donde se ueria q cada uez trazia hua dúzia duas dúzias & q ella ta lhe disera como nã vsaua antes da fysica & ë vysitar seus doemtes asy como fezera seu pay & q elle lhe Respondera q nã estimaua ne tynha de fazer cõ yso q estimaua muis sua honrra & seu saber q nã a fysiqua. Esta denúncia é confirmada pelo filho e pelo marido da denunciante.
A via para a Inquisição (maldita) tinha sido um tal mestre Afonso, pregador, ao qual a senhoria de António Luís, acompanhada por um criado que confirmou as suas declarações, viera consultar sobre a conveniência de denunciar o inquilino. Então acrescentara que António Luís espuja e grego & e abrayco. & q era chamado o grande philosopho plos xpãos nouos & q era grade ajutamto delles e sua casa. Como se vê, todas as acusações visavam a fazer de António Luís um cristão-novo judaizante. Até o aparar das penas era feito aos domingos e dias santos principais... O inquisidor João Melo, desta vez, foi benevolente e a sentença saiu ligeira: Visto como as tas se refere aos liuros & escritura que o R. podia ter feito e sua casa os quaes forom achados catholicos & asi vista a èformação q de sua vida & custumes foi tomada, mando q seja o R. Solto & p ter algíis liuros de hebraico ë sua casa de sop.ta  lhe dou e penjtençia o tpo q esteue preso. J° De mello Inquisidor.
Esta sentença é de 21 de Fevereiro de 1539. Creio que o João Melo levou preso António Luís na noite em que com as varas da Justiça, entre as onze horas e meia-noite, lhe examinou em casa livros e papéis. Isto passou-se a 10 de Fevereiro. Portanto, o lic° António Luís deve ter estado preso uns onze dias. Por testemunhos e declarações, insertos no processo, fica-se a saber que António Luís estudou em Salamanca e que, entre os seus amigos de Lisboa, ao tempo que foi preso, se contavam o leitor João de Barros, André de Resende, oquatrim & o padre frey brás. Num parecer em latim, o promotor de Justiça que assina philippus, chama aos amigos de António Luís uiri probatae uitae. O processo mostra que António Luís era em 1539 solteiro, não exercia a Medicina e se entregava a laboriosos trabalhos de investigação. Desse mesmo ano de 1539, é um livro em latim, escrito em louvor de João III e da expansão ultramarina dos portugueses, a Panagyrica Oratio, em nossos dias mais nomeado do que lido. Todavia, está longe de ser a sua obra mais importante. O autor declara solenemente que a Oratio, embora publicada em 1539, fora escrita anos antes, como me fez notar, Jorge Alves Osório. Mas a oportunidade da publicação é óbvia». In Américo Costa Ramalho, António Luís, Corrector de Erasmo, Revista Humanitas, volume XLV, 1993, Universidade de Coimbra.

Cortesia da UCoimbra/JDACT