domingo, 20 de setembro de 2015

De como um Rei Perdeu a França. Maurice Druon. «Nem todos esses soberanos foram águias. Mas quase sempre ao incapaz ou ao infeliz sucede imediatamente, como por uma graça do céu, um monarca de grande estatura; ou ainda um grande ministro governa no lugar de um príncipe fraco»

Cortesia de wikipedia e jdact

«As tragédias da história revelam os grandes homens: mas são os medíocres que provocam as tragédias. No começo do século XIV, a França é o mais poderoso, o de mais densa população, o mais activo, o mais rico dos reinos cristãos, aquele cujas intervenções são temidas, respeitados, a protecção, solicitada. E pode-se pensar que se abre para a Europa um século francês. Que aconteceu, quarenta anos depois, para que esta França fosse esmagada nos campos de batalha por uma nação cinco vezes menos populosa, que sua nobreza se dividisse em facções, que sua burguesia se revoltasse, que seu povo sucumbisse sob o excesso de impostos, que suas províncias se desprendessem umas das outras, que bandos de salteadores se entregassem à devastação e ao crime, que a autoridade fosse escarnecida, a moeda, aviltada, o comércio, paralisado, a miséria e a insegurança se instalassem por toda parte? Por que esta derrocada? O que, afinal, fez regredir o destino? A mediocridade. A mediocridade de alguns reis, a sua vaidade enfatuada, a sua incompetência nos negócios, sua inaptidão para se cercar de assessores competentes, a sua displicência, a sua presunção, a sua incapacidade de conceber grandes intentos ou somente prosseguir naqueles concebidos antes deles.
Nada se realiza de grande, na ordem política, e nada perdura, sem a presença de homens cujo génio, carácter e vontade inspirem as energias de um povo. Tudo se desfaz desde que personagens ineptas se sucedam no topo do Estado. A unidade se desfaz quando a grandeza se desgasta. A França é uma ideia aceita pela história, uma ideia espontânea que, a partir do ano 1000, abriga uma família reinante, e que se transmite tão obstinadamente de pai a filho que a primogenitura no ramo mais antigo toma-se rapidamente uma suficiente legitimidade. O acaso, certamente, tem a sua parte, como se o destino quisesse favorecer, através de uma dinastia robusta, esta recente nação. Da eleição do primeiro Capeto à morte de Filipe, o Belo, onze reis apenas em três séculos e um quarto, e cada um deixando um herdeiro homem. Oh! Nem todos esses soberanos foram águias. Mas quase sempre ao incapaz ou ao infeliz sucede imediatamente, como por uma graça do céu, um monarca de grande estatura; ou ainda um grande ministro governa no lugar de um príncipe fraco.
A extraordinariamente jovem França quase perece nas mãos de Filipe I, homem de pequenos vícios; de vasta incompetência. Sobrevêm então o corpulento Luís VI, infatigável, que encontra, no seu advento, um poder ameaçado a cinco léguas de Paris, e o deixa, ao morrer, restaurado ou estabelecido até aos Pireneus. O inseguro, inconsequente Luís VII lança o reino nas desastrosas aventuras de além-mar; mas o abade Suger mantém, em nome do monarca, a coesão e a actividade do país. E assim a oportunidade da França, oportunidade que se repete, é ter em seguida, repartidos entre o fim do século XII e o começo do XIV, três soberanos de génio ou de excepção, cada qual servido por uma assaz longa permanência no trono, quarenta e três anos, quarenta e um anos e vinte e nove anos, para que o seu intento principal se torne irreversível. Três homens de natureza e de virtudes bem diferentes, mas todos os três acima do comum dos reis.
Filipe Augusto, forjador da história, começa, em torno e além das possessões reais, a confirmar a unidade da pátria. São Luís, iluminado pela piedade, começa a estabelecer, em torno da justiça real, a unidade do direito. Filipe, o Belo, governante superior, começa a impor em volta da administração real a unidade do Estado. Nenhum deles teve o empenho, antes de tudo, de agradar, mas o de ser diligente e eficaz. Cada qual teve que absorver a amarga beberagem da impopularidade. Mas foram mais lamentados após a morte, porque desacreditados, zombados ou odiados enquanto vivos. E, sobretudo, o que tinham desejado começou a existir. Uma pátria, uma justiça, um Estado: os fundamentos definitivos de uma nação. A França, com esses três supremos artesãos da ideia francesa, saíra do tempo das virtualidades. Consciente de si, afirmava-se no mundo ocidental como uma realidade indiscutível e, desde logo, preeminente.
Vinte e dois milhões de habitantes, fronteiras bem guarnecidas, um exército rapidamente mobilizável, feudatários mantidos na obediência, circunscrições administrativas muito bem controladas, estradas seguras, um comércio activo; que outro país cristão pode nesse tempo se comparar com a França e não lhe ter inveja? O povo se queixa, é verdade, sentindo sobre si a mão que julga com firmeza; lamentará muito mais quando for entregue a mãos demasiado frouxas ou muito loucas. Com a morte de Filipe, o Belo, de súbito, a fractura. A longa oportunidade da sucessão está esgotada. Os três filhos do Rei de Ferro desfilam no trono sem deixar descendência masculina. Contamos, precedentemente, os dramas que a corte da França conheceu em torno de uma coroa várias vezes lançada no leilão das ambições». In Maurice Druon, De como um Rei Perdeu a França, 1977, tradução Homero Silveira, Gótica, colecção Cavalo de Tróia, 2007, ISBN 978-972-792-208-6.

Cortesia de Gótica/JDACT