sábado, 26 de setembro de 2015

Beatriz e Virgílio. Yann Martel. «Mas por trás da não ficção séria encontra-se o mesmo facto e a mesma preocupação que por trás da ficção, o que é e o que significa ser-se humano, portanto por que motivo devia o ensaio ser reduzido a uma espécie de posfácio?»

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«(…) Por fim, a actividade relacionada com a promoção pessoal do seu romance acalmou e Henry regressou a uma existência na qual podia passar semanas e meses tranquilamente sentado numa sala. Escreveu outro livro, que exigiu cinco anos de reflexão, investigação, escrita e reescrita. O destino desse livro tem alguma relação com o que aconteceu subsequentemente a Henry, pelo que merece ser descrito. O livro que Henry escrevera estava dividido em duas partes, e ele pretendia que a obra fosse publicada num formato conhecido no mundo editorial como flip book, isto é, um livro com dois conjuntos distintos de folhas, ligados a uma lombada comum, de costas um para o outro e de pernas para o ar um em relação ao outro. Ao folhear um desses livros, a certa altura as páginas começam a aparecer de pernas para o ar. Nessa altura, ao virar-se o livro ao contrário, encontra-se o seu gémeo. Daí o nome flip book.
Henry escolhera esse formato invulgar porque estava preocupado com a melhor maneira de apresentar dois objectos literários que partilhavam o mesmo título, o mesmo tema e a mesma preocupação, mas não o mesmo método. Pois, na realidade, Henry escrevera dois livros: um deles era um romance, enquanto o outro era um ensaio, uma obra não ficcional. Optara por essa dupla abordagem porque sentia necessidade de recorrer a todos os meios de que dispunha para desenvolver o tema escolhido. Mas ficção e não ficção só muito raramente são publicadas num único livro. Era essa a dificuldade. A tradição afirma que as duas devem ser mantidas separadas. É assim que os nossos conhecimentos e impressões acerca da vida são ordenados em livrarias e bibliotecas: estantes diferentes, pisos diferentes. E é assim que os editores preparam os seus livros: a imaginação numa embalagem, a razão noutra. Mas não é assim que os autores escrevem. Um romance não é uma criação inteiramente insensata e um ensaio não é inteiramente desprovido de imaginação. E também não é assim que as pessoas vivem. As pessoas não separam de modo tão rigoroso o imaginário do racional nos seus pensamentos e actos. Há verdades e mentiras; essas são as categorias transcendentais, tanto nos livros como na vida. A divisão útil é entre a ficção e a não ficção que dizem a verdade, e a ficção e a não ficção que dizem mentiras. Contudo, Henry compreendeu que o costume, a maneira de pensar preestabelecida, colocava um problema. Se o seu romance e o seu ensaio fossem publicados separadamente, como dois livros, a sua complementaridade não seria tão evidente e a sinergia iria provavelmente perder-se. Tinham de ser publicados juntos. Mas por que ordem? A ideia de pôr o ensaio antes do romance parecia-lhe inaceitável. A ficção, estando mais perto da experiência total da vida, devia ter precedência sobre a não ficção. As histórias, histórias individuais, histórias de família, histórias nacionais, são o que liga os elementos díspares da existência humana num todo coerente. Somos animais de histórias. Não seria correcto colocar uma expressão tão grandiosa do nosso ser atrás de um acto mais limitado de raciocínio exploratório.
Mas por trás da não ficção séria encontra-se o mesmo facto e a mesma preocupação que por trás da ficção, o que é e o que significa ser-se humano, portanto por que motivo devia o ensaio ser reduzido a uma espécie de posfácio? Independentemente das questões de mérito, se um romance e um ensaio fossem publicados em sequência num só livro, o primeiro remeteria inevitavelmente o segundo para a sombra. As similaridades entre ambos impunham a publicação conjunta do romance e do ensaio; o respeito pelos direitos de cada um exigia uma publicação separada. Assim, após muita reflexão, Henry optou pela solução do flip book. Quanto mais pensava, mais vantagens encontrava nessa alternativa. O evento que constituía o eixo do seu livro era, e ainda é, profundamente perturbador; podia mesmo dizer-se que virara o mundo de pernas para o ar. Portanto, era mais do que adequado que metade do livro também estivesse sempre de pernas para o ar.
Além disso, se fosse publicado no formato de flip book, caberia ao leitor escolher a ordem pela qual o leria. Os leitores com tendência para procurarem auxílio e conforto na razão talvez lessem primeiro o ensaio. Os que se sentissem mais à vontade com a abordagem mais directamente emocional da ficção poderiam começar pelo romance. Fosse como fosse, a escolha pertenceria ao leitor e a emancipação, a possibilidade de escolher, ao lidar com matérias perturbadoras, é uma boa coisa. Por fim, havia o pormenor de um flip book ter duas capas. Aos olhos de Henry, a arte da sobrecapa era mais do que uma mera adição estética. Um flip book é um livro com duas portas de entrada, mas nenhuma de saída. A sua forma dá corpo à ideia de que o rema discutido na obra não tem resolução, não dispõe de uma contracapa que se possa fechar tranquilamente sobre ele. Pelo contrário, o debate nunca é terminado e o leitor é sempre levado a uma página central na qual, como o texto aparece de pernas para o ar, é forçado a compreender que não compreendeu, que não pode compreender inteiramente, mas tem de repensar o assunto de uma maneira diferente e recomeçar do princípio. Com essa ideia em mente, Henry concluiu que os dois livros deviam terminar na mesma página, ficando os dois textos às avessas separados apenas por um espaço em branco. Talvez pudesse haver um desenho simples nessa terra de ninguém entre a ficção e a não ficção». In Yann Martel, Beatriz e Virgílio, tradução de Fátima Andrade, Editorial Presença, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-234-385-5.

Cortesia EPresença/JDACT