quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Do Desencanto à Alegria. O Satyricon de Petrónio e o Satyricon de Fellini. Walter Medeiros. «… entre todos os escritores da Antiguidade greco-latina, nenhum é mais moderno que Petrónio; poderia entrar, e com o pé direito, na literatura contemporânea, e tomá-lo-íamos por um dos nossos»

Cortesia de wikipedia e jdact

«O artista assume o rosto da esfinge. Mas não cria o deserto à sua volta. Umas vezes na luz, outras na treva, aquele sorriso, apenas acenado, é um convite. Que se pode acolher, ignorar, rejeitar ou adiar. Ε muitas vezes se adia. Sereno e confiante, o tempo lhe pertence, o artista espera a sua hora. Uma hora que tarda, sabe-se lá, a espessura dos séculos. Mas aquele rosto é de titânio: resiste, como a esfinge, à corrosão da areia. Ε como a esfinge conserva, no gume do olhar, na inflexão dos lábios, o mesmo sorriso de convite. Que é o outro nome da esperança. Tem acontecido a muitos. Aconteceu a Petrónio. Mas esta é a sua hora. Porque o homem vive a plenitude do absurdo, o desgarre dos valores tradicionais, os caprichos ociosos da Fortuna; e, nostálgico da lama, repete, no segredo da sua alma, a confissão de Flaubert: Uignoble me plait: c 'est le sublime d'en bas. Quand il est vrai, il est aussi rare à trouver que celuid'en haut. Por isso um abismo separa a excomunhão lançada por Menéndez Pelayo, o grande Menéndez Pelayo, maldita seja esta arte que degrada e envilece, da homenagem entusiástica de Raymond Queneau: entre todos os escritores da Antiguidade greco-latina, nenhum é mais moderno que Petrónio; poderia entrar, e com o pé direito, na literatura contemporânea, e tomá-lo-íamos por um dos nossos; [...] eu quero-lhe bem como a um irmão; [...] eu amo Petrónio como Montaigne amava Paris, com ternura, mesmo nas suas verrugas e nas suas manchas; com uma diferença apenas, é que eu lhe não encontro manchas nem verrugas.
Nem manchas nem verrugas. Mas o observador desprevenido, e permeável aos tabus da moral vitoriana, só vê manchas e verrugas. No estado fragmentário em que se encontra, o Satyricon é um romance perturbador, assumidamente anti-heróico, uma espécie de romance da canalha. A começar pelos protagonistas da acção. Senhora, declara Εncólpio, o narrador autodiegético, eu me confesso, que muitas vezes errei, porque sou homem e ainda jovem. Uma traição eu cometi; um homem eu matei; um templo eu profanei. Traidor, homicida, sacrílego. Ε poderia acrescentar: ladrão, embusteiro, cobarde, frascário, e impotente. Naquele rosto polido, de olhos claros e inquietos que Fellini elegeu, braceja um mar tormentoso e angustiado de crimes e frustrações. E Ascilto, o companheiro desleal que lhe disputava a posse de Gíton, o seu bem-amado? O esgar ebrirridente, a boca túmida entre malares bestiais definem a imagem desbragada do cinismo e do sexo prepotente: o instrumento pendurado num homem ou um homem pendurado no instrumento?
Quanto a Gíton, o belo adolescente requestado por homens e mulheres, esse tem a perfídia sinuosa da cortesã que vende os seus favores ao mais forte ou melhor colocado. Teatral, mimado, calculista, faz de rameira na prisão e pinga-amor na hora do naufrágio; tão feminina era a sua natureza que a mãe o convenceu a drapejar a estola no dia em que devia envergar a toga viril. Afastado Ascilto, outro rival se alevantou frente a Encólpio: o velho Εumolρo, o Bom Cantor. A bem dizer, o Bom Cantor cantava mal e só pedradas conquistava; mas a contar, ninguém o excedia: a contar e a viver as suas falácias libertinas. Assim farsante e hedonista, com o engano subsistiu, com o engano prosperou, com o engano representou o último acto (tragicómico) da sua bizarra existência de gaudente.
Mas não são melhores os comparsas da acção. Rei do festim, Τrimalquião é a figura mais trabalhada de quanto resta do Satyricon: um misto de extravagância e de ridículo, de tenacidade vitoriosa e obsessão da morte, ora tirano, ora arlequim, sempre vivaz na carne sofredora, o minotauro de um labirinto de imprevisíveis meandros onde os intelectuais se perdem e podem, até, ser devorados. Rico e supersticioso como Trimalquião, Liças não tem o mesmo carisma de vitória: traído pela mulher, ultrajado por Encólpio, miseramente o arrebata uma onda e mãos inimigas lhe escavam, no areal, inglória sepultura. Ε que dizer das mulheres? Todas apresentam o estigma, passado ou presente, da corrupção. Quartila, a lúbrica sacerdotisa de Priapo, transforma as penitências em orgias e a inocência das crianças em deleites de voyeur; Fortunata, arrancada à prancha dos escravos, pontifica na domus de Trimalquião como senhora zelosa e semi-recatada, depois de ter sido bailarina impudica de córdax; Τrifena, uma call-lady da alta-roda, vai para Tarento em viagem de recreio ou de exílio; a deslumbrante Circe adora os amplexos dos escravos, enquanto a sua escrava, Crísis, só quer os dos cavaleiros». In Walter Medeiros, Do Desencanto à Alegria, o Satyricon de Petrónio e o Satyricon de Fellini, Revista Humanitas, volume XLIX, 1997, Universidade de Coimbra.

Cortesia da UCoimbra/JDACT