terça-feira, 2 de setembro de 2014

Peregrino e Estrangeiro. Ensaios. Marguerite Yourcenar. «O segredo mais profundo de Olímpia está nesta única nota pura: lutar é um jogo, viver é um jogo, morrer é um jogo; perda e ganho mais não são que diferenças passageiras…»

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«(…) Tal como no passado, os homens continuarão indubitavelmente a escolher, de entre essas alternativas anteriores, à sua época, as que melhor servem de antídoto aos seus próprios erros, ou que estão de acordo com as suas opiniões consideradas como subversivas ou, pelo menos, condenadas, pela maioria que os rodeia. A filosofia platónica foi uma forma apaixonada de livre idealismo nos círculos florentinos do século XV, oferecendo aos espíritos elementos que não eram necessariamente contrários ao pensamento cristão, pelo menos, assim o acreditaram, mas que o pensamento cristão, só por si, não lhes trazia. Os pré-socráticos só foram verdadeiramente compreendidos quando, por um lado, o estudo do pensamento oriental e, pelo outro, as novas concepções da ciência relativamente ao universo, mostraram a profundidade dos seus dados. O hedonismo e o pirronismo antigos serviram sempre ao pensamento ocidental de defesa contra os excessos do dogmatismo e do ascetismo.
O mesmo se pode dizer das nossas vidas individuais. Decerto algum homem ou alguma mulher pedirá lições de coragem à sabedoria estóica, comparará as suas noções sobre o amor com a de Platão, do tempo com as de Zenão de Eleia, ou algum espírito apaixonado de realidade pura beberá nas fontes do Tao-Te-King.

A Última Olímpica
Há vitórias e uma volta da roda transforma-as em derrotas; há derrotas e a justiça divina dá-lhes com o tempo o aspecto de vitórias: Olímpia, cidade onde se gemeu por não se ter ganhado a coroa, onde se chorou de alegria por havê-la conquistado e onde agora mais não resta do que obter a aprovação muda do silêncio e o ramo que a imparcialidade do vento entrega ao acaso. Um vale suave qual palma de mão humana atravessada pela linha do coração de uma ribeira, pela linha da vida de um rio e onde se abaula a leste o monte de Júpiter, franqueado pelo sol da manhã como se por um disco lançado por um lutador. Outrora, no tempo em que a Grécia era uma Índia pejada mas não sobrecarregada de deuses, uma equipa de sacerdotes entregava-se aqui a esfregar com azeite a estátua colossal do Zeus de Vitória na mão. Não podemos deixar de admirar sem reservas esse deus de marfim e de ouro cuja menção basta para nos lembrar que Olímpia foi um lugar aonde se vinha para orar, mas também para receber coroas.
Porém, antes da introdução do culto de Zeus, outras estátuas imperavam aqui, estátuas de mulheres: Hera de olhos bovinos, eterna como a erva, pacífica como os animais dos campos. O Zeus mais tardio não passa de uma imitação barbuda dessa grande fêmea venerável. Tal como em La Géante, um dos poemas em que Baudelaire atinge a Grécia dos mitos porque não a procurou, estamos aqui sobre os joelhos de uma mulher divina. Os pinheiros umbrosos são a sua cabeleira, em que oliveiras misturam fios cinzentos; os cursos de água são as suas veias; o turbilhão das vitórias mais não é do que um voo de pombas de penugem branca dispersa pelos séculos. Os robustos atletas eram, sem dúvida, jovens árvores; os suplicantes, troncos erguendo ao céu os seus dois ramos. Tudo aqui proclama não tanto a metamorfose quanto a profunda identidade. Até algumas colunas ainda enraizadas neste solo parecem espantar-se de não deitarem ramos ou de não darem flores, como as ninfas que se tornavam arbustos, como os rapazes que se tornavam narcisos ou jacintos.
Os joelhos da Terra são macios aos frutos, aos corações caídos. Há que vir aqui para ver derrota e triunfo fundirem-se num todo que nos ultrapassa, mas que, sem nós, estaria incompleto. Entre a vida e a morte, entre a alegria e o seu contrário, há luta, tréguas e finalmente acordo. Acordo: a flauta de um pastorzinho que passa modula essa palavra na língua do buxo, na língua do junco. Esse som apenas perceptível insere-se no silêncio em lugar de quebrá-lo. O segredo mais profundo de Olímpia está nesta única nota pura: lutar é um jogo, viver é um jogo, morrer é um jogo; perda e ganho mais não são que diferenças passageiras, mas o jogo reclama todas as nossas forças e a sorte, por aposta, aceita tão somente os nossos corações». In Marguerite Yourcenar, En Pélerin et Étranger, Gallimard, 1989, Peregrino e Estrangeiro, Ensaios, Livros do Brasil, Lisboa, 1990.

Cortesia LBrasil/JDACT