segunda-feira, 29 de setembro de 2014

A Hora Universal dos Portugueses. Pedro Veiga. «Por um lado, enquanto definha a exploração da terra, fenómeno que em Portugal já se começa a sentir a partir de Afonso IV, sendo impotentes as leis fernandinas (Leis das Sesmarias) para debelar a crise, acentua-se e progride o intercâmbio…»

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«(…) Passe, por isso, em julgado, que com a crise mística das Cruzadas, a Europa procura restabelecer o equilíbrio na sua vida económica, operando-se então um profundo movimento político e social com base na translação dos valores económicos, daí resultando a subversão da riqueza imobiliária, representada pelos domínios senhoriais, e a criação de novo expoente económico: o metal amoedado e a letra de câmbio. O dinheiro domina o ritmo vital da idade e nascer. Novos horizontes se abrem ao homem; a uma nova conformação vai, por sua vez, obedecer a ordem social afirmei no meu ensaio sobre a Civilização Burguesa. E assim foi de facto.
Preparada nesse imenso crisol que e Idade Média foi, a Burguesia, que o comércio e a indústria, a política financeira dos judeus e a decadência da aristocracia fundiária e militar, elevara ao primeiro plano da vida civil; ia dirigir os destinos da Europa até aos nossos dias, e ia, fundindo os seus interesses com a essência da Civilização Cristã, escrever toda a história universal com a quilha das naus, a palavra dos missionários, as alabardas dos tércios, os dogmas da autoridade do Estado, as liberdades da Razão e a epopeia incendiária da Revolução, ia escrever, acentuo de novo, os fastos da história contemporânea, com a sua vontade revolucionária, porque, servindo os interesses da Civilização, a intervenção da Burguesia como classe organizada na vida social marca na Europa a maior revolução depois do cristianismo e da constituição hierárquica da Igreja. Agora quero eu frisar um estranho paradoxo histórico. Particularista a civilização aristocrática da Idade Média não concebeu um ideal que possamos designar como nacional. Teve outros, decerto, o mais alto dos quais foi inspirado pelo fervor religioso. Mas basta considerar a pulverização da soberania política, o estádio de conglomeração episódica que formava a rede política do feudalismo, para podermos definir a Europa cristã como um conjunto amorfo de soberanias pessoais, uma comunidade aristocrática dominada pela autoridade temporal e espiritual do papado.
Duma maneira só, verdadeira Respublica Christiano, na linguagem dos teólogos e dos jurisconsultos, na qual a soberania régia e o poder episcopal dos bispos, na sociedade civil e na eclesiástica, em princípio, se reconheciam equiparados perante a suprema autoridade do Vigário de Cristo. O papa encarnava a noção muçulmana de Califa. O papa era a cúpula da Igreja no espiritual e no temporal, fórmula percursora do super-estado que os idealistas demandam com afã no horizonte nebuloso. Como aquele  assegurava a unidade religiosa e proclamava a guerra de Deus contra os inimigos do seu nome. A Idade Média tendia para a Teocracia e foi a Revolução Burguesa que a destruiu com o seu conceito de nação e a formação do Estado Moderno. A história surpreende na obtenção pela Burguesia do poder económico e na sua crescente hegemonia política um duplo e contraditório efeito. Por um lado, enquanto definha a exploração da terra, fenómeno que em Portugal já se começa a sentir a partir de Afonso IV, sendo impotentes as leis fernandinas (Leis das Sesmarias) para debelar a crise, acentua-se e progride o intercâmbio comercial europeu e, em especial, o que com o Próximo Oriente mantinham depois das Cruzadas as armadas das poderosas Repúblicas marítimas italianas. Daqui resulta uma tendência cosmopolita mais que nenhuma outra capital na explicação da história portuguesa». In Pedro Veiga, A Hora Universal dos Portugueses, Tipografia Sequeira, Prometeu, Porto, 1948.

Cortesia de T.Sequeira/JDACT