quarta-feira, 3 de julho de 2019

O Pêndulo de Foucault. Umberto Eco.«Fiz os cálculos: trinta e seis aberturas. Trinta e seis. Há mais de dez anos que esse número me obceca. E também o cento e vinte»

Cortesia de wikipedia e jdact

Ficheiro: Abu
«(…) A paisagem em torno à torre era incôngrua e incongruamente povoada, como ocorre naqueles rébus onde se vêem um palácio, uma rã em primeiro plano, um mulo com a albarda e um rei que recebe a dádiva de um pajem. Neste, à esquerda, em baixo, um cavaleiro, seguro a uma roldana presa a um perno, saía de um poço por força de estranhos cabrestantes puxados para um ponto no interior da torre, através de uma janela circular. No centro um cavaleiro e um viandante, à direita um peregrino ajoelhado que segura uma âncora à guisa de bordão. Do lado direito, quase em frente, um pico, uma rocha da qual se precipita um personagem com espada, e, do lado oposto, em perspectiva, o Ararat, com a Arca encalhada no topo. Ao alto, nos ângulos, duas nuvens, cada qual iluminada por uma estrela, irradiando sobre a torre os seus raios oblíquos, ao longo dos quais levitam duas figuras, um homem nu envolvido por uma serpente, e um cisne. No alto, ao centro, um nimbo sobre o qual havia a palavra oriens em caracteres hebraicos, donde despontava a mão de Deus que sustinha a torre por meio de um fio.
A torre movia-se sobre rodas, tinha uma primeira elevação quadrangular, com janelas, uma porta, uma ponte levadiça, na ala direita, depois uma espécie de balaustrada com quatro torreões de observação, cada qual guardado por um soldado tendo numa das mãos um escudo (gravado com caracteres hebraicos), e agitando uma palma com a outra. Mas só três dos quatro soldados eram visíveis, sendo que o quarto se adivinhava apenas, oculto pela mole da cúpula octogonal, sobre a qual se elevava um tibúrio, da mesma forma octogonal, e deste despontava um grande par de asas. Por cima, havia outra cúpula menor, com uma torrezinha quadrangular que, aberta em grandes arcos suspensos por delgadas colunas, deixava ver no próprio interior um sino. Depois uma cupulazinha final, de quatro gomos, acima da qual se estendia o fio mantido no alto pela mão divina. Dos lados da cupulazinha, a palavra Fa/ma, e sobre a cúpula um friso: Collegium Fraternitatis.
Não acabavam aí as bizarrices, porque das outras duas janelas redondas da torre despontavam, à esquerda, um braço enorme, desproporcional em relação às outras figuras, empenhando uma espada, como se pertencesse ao ser alado inserido na torre, e à direita uma imensa cometa. A cometa, por sua vez... Comecei a suspeitar do número de aberturas da torre: rigorosamente regulares nos tibúrios, casuais no entanto nos lados da base. A torre era vista apenas de dois quartos, em perspectiva ortogonal, e era possível imaginar-se que por motivos de simetria as portas, as janelas e a vigia que se viam de um lado, em baixo, estivessem reproduzidas igualmente do lado oposto na mesma ordem Portanto, quatro arcos no tibúrio do sino, oito janelas no tibúrio inferior, quatro torrezinhas, seis aberturas entre a fachada oriental e a ocidental, catorze entre a fachada setentrional e a meridional. Fiz os cálculos: trinta e seis aberturas. Trinta e seis. Há mais de dez anos que esse número me obceca. E também o cento e vinte.
Os Rosa-Cruzes. Cento e vinte dividido por trinta e seis dava, mantendo sete dígitos, 3,333333. Exageradamente perfeito, mas talvez valesse a pena experimentar. Sem resultado. Ocorreu-me que aquela cifra, multiplicada por dois, dava aproximadamente o número da Besta, 666. Mas essa conjectura também se revelou por demais fantasiosa. Impressionou-me de repente o nimbo central, sede divina. Eram muito evidentes as letras hebraicas, que eu podia ver até mesmo da cadeira onde estava. Mas Belbo não podia escrever letras hebraicas no Abulafia. Observei melhor: eu as conhecia, sem dúvida, da direita para a esquerda, jod, he, waw, he. Iahveh, o nome de Deus.

Com as vinte e duas letras fundamentais que gravou, piasniou, combinou, sopeaou e permutou, ele deu forma a todo o criado e ao que se há de formar no futuro. O nome de Deus... É claro. Lembrei-me do primeiro diálogo entre Belbo e Diotallevi, no dia em que instalaram Abulafia no escritório». In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, Sicidea, Difel, 2008, ISBN 978-846-125-726-3.

Cortesia de Sisidea/Difel/JDACT