quinta-feira, 11 de julho de 2019

De Amor e de Sombra. Isabel Allende. «Porém, Irene deteve-a com um gesto. Deixe-o. Não faz mal a ninguém, sorriu. Beatriz deixou o seu posto de observação mordendo os lábios»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Decidiu que mandaria pintar a casa. Com os olhos contava os velhos e revia os mínimos detalhes para garantir o cumprimento das suas ordens. Nenhum deles faltava, excepto aquele infeliz depressivo que continuava de cama, mais morto de angústia do que vivo. Atentou também nas enfermeiras, reparando nos aventais limpos e engomados, os cabelos presos e as sapatilhas de borracha. Sorriu satisfeita, pois tudo funcionava bem e tinha passado o perigo das chuvas, com o seu cortejo de epidemias, sem lhe levar cliente algum. Com um pouco de sorte, teria a renda assegurada por mais uns meses, já que até o doente mais debilitado poderia sobreviver todo o Verão. Do seu observatório, Beatriz avistou a filha, Irene, entrando no jardim A Vontade de Deus. Verificou com desgosto que não utilizava a porta lateral de acesso ao andar particular e à escada do apartamento do segundo andar, onde tinham instalado a sua moradia. Fizera construir uma entrada à parte especialmente para não passar pelo lar dos idosos quando chegava ou saía de casa, porque a decrepitude a deprimia e preferia espreitá-la de longe. A filha, pelo contrário, não perdia a oportunidade de visitar os hóspedes, como se sentisse prazer na companhia deles. Parecia ter descoberto uma linguagem para vencer a surdez e a memória fraca. Agora mesmo circulava entre eles, distribuindo guloseimas moles por causa das dentaduras postiças. Observou-a aproximando-se do paralítico, mostrando-lhe uma carta, ajudando-o a abri-la, porque ele não podia fazê-lo com a sua única mão sã. Viu-a a seu lado cochichando. Depois, deu um rápido passeio com outro senhor velho e, embora da sacada a mãe não ouvisse as suas palavras, imaginou que falavam do único tema que interessava o homem: o filho, a nora e o bebé. Irene dedicou a cada um deles um sorriso, um carinho, uns minutos do seu tempo, enquanto na sacada Beatriz pensava que nunca chegaria a entender essa jovem extravagante com quem tinha pouco em comum. De repente o avô lúbrico aproximou-se de Irene e colocou as duas mãos nos seus seios, apertando-os mais por curiosidade do que por lascívia. Ela deixou-se ficar imóvel por instantes, que, para a mãe, pareciam não ter fim, até que uma das enfermeiras percebeu a situação e correu para intervir.
Porém, Irene deteve-a com um gesto. Deixe-o. Não faz mal a ninguém, sorriu. Beatriz deixou o seu posto de observação mordendo os lábios. Dirigiu-se à cozinha, onde Rosa, a empregada, cortava as verduras para o almoço, embalada pela novela da rádio. Tinha o rosto redondo, moreno, sem idade, os seios fartos, a barriga mole, as coxas enormes. Era tão gorda que não podia cruzar as pernas nem lavar as costas sozinha. Como limpas o teu traseiro, Rosa?, perguntava-lhe Irene em miúda, maravilhada diante desse enorme volume acolhedor que a cada ano aumentava um quilo. Mas que ideias tens, criatura! Gordura é formosura, respondia Rosa, imutável, fiel ao seu costume de falar usando provérbios. - Irene preocupa-me, disse a patroa, sentando-se num tamborete e tomando lentamente o sumo.
Rosa não respondeu nada, mas desligou o rádio, convidando-a à confidência, e a senhora suspirou, tenho de falar com a minha filha, não sei no que anda metida, nem quem são esses vagabundos que lhe fazem companhia. Porque não vai ao clube jogar ténis e aproveita para conhecer jovens da sua própria categoria? Com a desculpa do trabalho, faz o que lhe apetece, o jornalismo sempre me pareceu um trabalho suspeito, próprio de gente baixa; se o noivo soubesse das coisas que acontecem a Irene, não aguentaria, porque a futura esposa de um oficial do Exército não se pode dar a esses luxos. Quantas vezes já lhe disse? E não me digam que cuidar da reputação está fora de moda, os tempos mudam, mas não tanto. Por outro lado, Rosa, agora os militares pertencem à melhor sociedade, não são como dantes. Estou cansada das extravagâncias de Irene, tenho muitas preocupações, a minha vida não é fácil, sabes bem como é. Desde que Eúsebio se foi embora, deixando-me com as contas bancárias bloqueadas e uma série de gastos dignos de uma embaixada, tenho de fazer milagres para me manter a um nível decente; mas tudo é muito difícil, os velhos são um peso, afinal de contas acho que dão mais dispêndio e cansaço do que lucros, custa muito fazê-los pagar a conta, sobretudo essa maldita viúva, sempre atrasada com a mensalidade». In Isabel Allende, De Amor e de Sombra, 1984, Porto Editora, ISBN 978-972-004-247-7.

Cortesia de PortoE/JDACT