segunda-feira, 1 de julho de 2019

Camões e a Infanta D. Maria. Ceuta. José Maria Rodrigues. «Sabei que busca só, do já cantado no tempo em que eu temia ou esperava. De quem o mal provou, que eu tanto amava, piedade, e não perdão, o meu cuidado»

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De volta de Ceuta
«(…) Pois se nem mesmo em versos que se occupam ex professo da menina dos olhos verdes, Camões deixa de se referir aos seus passados amores!

Passado já algum tempo que os amores
De Almeno, por seu mal, eram passados,
Porque nunca Amor cumpre o que promette,
Entre uns verdes ulmeiros apartado,
Regando por o campo as brancas flores.
Em lagrimas cansadas se derrete.
Quando a linda pastora, que compete

Co monte em aspereza,
Co prado em gentileza.

Por quem o pastor triste endoudecia,
Por a praia do Tejo discorria
A lavar a beatilha e o trançado.

O sol já consentia
Que saísse da sombra o manso gado.

Já acordado daquelle pensamento,
Que tão desacordado sempre o teve,
Viu por acerto o bem que incerto tinha;
E porque, donde o amor a mais se atreve,
Alli mais enfraquece o entendimento,
Não lhe soube dizer o que convinha.
(Egloga 3ª).

Pois se até ao invocar a musa inspiradora para o poema épico que vai emprehender, se presente que o som vem d’uma parte, mas que a pancada é em outra!

Em vós tenho Helicon, tenho Pégaso ;
Em vós tenho Calliope e Thalia
E as outras sete irmãs, co fero Marte.
Em vós deixou Minerva sua valia;
Em vós estão os sonhos do Parnaso;
Das Pierides em vós se encerra a arte.

Com qualquer pouca parte,
Senhora, que me deis de ajuda vossa.

Podeis fazer que eu possa
Escurecer ao sol resplandecente;

Podeis fazer que a gente
Em mi do grão poder vosso se espante
E que vossos louvores sempre cante.

Podeis fazer que cresça de hora em hora
O nome Lusitano, e faça inveja
A Esmirna, que de Homero se engrandece.
Podeis fazer também que o mundo veja
Soar na ruda frauta o que a sonora
Cithara Mantuana só merece.
(Egloga 4.ª')

NOTA: Esta egloga foi dirigida a dona Francisca de Aragão. Na egloga 5.ª, escripta na mesma occasião, e bem assim no soneto 190, allude também Camões á projectada epopea. Em Ceuta ainda não pensava nella, e se vê do soneto 267, manifestamente contemporâneo desta epistola, e dirigido pelo poeta a um seu admirador, que também fazia versos:

Se a fortuna inquieta e mal olhada,
Que a justa lei do ceu comsigo infama,
A vida quieta, que ella mais desama,
Me concedera, honesta e repousada.

Pudera ser que a Musa, alevantada
Com luz de mais ardente e viva flamma,
Fizera ao Tejo, lá na pátria cama,
Adormecer ao som da lyra amada.

Porém, pois o destino trabalhoso,
Que me escurece a Musa fraca e lassa,
Louvor de tanto preço não sustenta,

A vossa, de louvar-me pouco escassa,
Outro sogeito busque valeroso,
Tal qual em vós ao mundo se apresenta.

                                                            

Forçado a desistir dos seus altos pensamentos, não tendo podido conseguir que a menina dos olhos verdes tornasse a olhar para elle, ferido no coração e no amor próprio, o poeta viu-se, com vergonha sua, fabula da gente, começou a servir de assumpto á maledicência.

Vós, que escuitais em rimas derramado
Dos suspiros o som, que me alentava
Na juvenil idade, quando andava
Em outro em parte do que sou mudado,

Sabei que busca só, do já cantado
No tempo em que eu temia ou esperava.
De quem o mal provou, que eu tanto amava,
Piedade, e não perdão, o meu cuidado.

Pois vejo que tamanho sentimento
Só me rendeu ser fabula da gente
(Do que comigo mesmo me envergonho),

Sirva de exemplo claro meu tormento,
Com que todos conheçam claramente
Que quanto ao mundo apraz é breve sonho.
(Soneto 101)

[…]
In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/JDACT