segunda-feira, 8 de julho de 2019

A Mentira Sagrada. Luís Miguel Rocha. «Myriam fora ao ginásio fazer um pouco de natação juntar-se-lhe-ia em seguida. As manhãs eram sempre iguais desde que entrara no titânico paquete»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) O cruzeiro não podia ter vindo em pior altura. As negociações com os compatriotas israelitas alcançavam o período crucial e teria de ser Ben Júnior a concluir o negócio, em Telavive. Era a prova de fogo do rapaz. Enfiou-se no MS Voyager of the Seas, um paquete de enormes proporções com 15 decks, mais uns milhares de pessoas. Chamavam-no de hotel flutuante e não estavam errados. Tinha casino, spa, capela para casamentos, pista de gelo, cinema, teatro, centro comercial, tudo para fazer esquecer os viajantes que estavam no mar e não em terra. E conseguiam-no fazer com louvor. O irónico é que Bem Isaac podia comprar o seu próprio barco e tripulação e navegar ao seu gosto, mais confortavelmente. Porém, Myriam fora inflexível. Um cruzeiro como os dos casais normais. Discutir com Myriam não era opção. Comprou cinco quartos no deck 14 para ficar no do meio e não ser incomodado por vizinhos desagradáveis. Claro que optou por esquecer-se de informar Myriam desse pormenor. Ben Isaac era assim. Condescendia até certo ponto e, depois, arranjava forma de fazer as coisas à sua maneira. Tentava poupar Myriam a tudo. Problemas com o negócio, os acidentes do filho, a cura de desintoxicação do irmão dela, as amantes do pai, noutros tempos. Não permitia que nada a incomodasse, fechava-a numa redoma de estabilidade, embora isso originasse outros problemas, como a falta de atenção, as longas ausências e a carência de afectos. Myriam insurgia-se e Ben Isaac submetia-se à sua vontade, adaptando-se à nova realidade. O segredo do seu sucesso foi sempre esse.
Assim o encontramos a ler o jornal na mesa 205 do restaurante do deck 14. Myriam fora ao ginásio fazer um pouco de natação juntar-se-lhe-ia em seguida. As manhãs eram sempre iguais desde que entrara no titânico paquete. E este israelita desterrado em Londres desde a infância, onde fez fortuna, não se importava. Desde que Myriam estivesse feliz, ele estava feliz. Não importava ter noticias da apenas à noite. Era o preço que tinha de pagar por inúmeras noites de ausência. Myriam merecia o sacrifício. O empregado trouxe-lhe o café. Bom dia, doutor Isaac. Como se sente hoje? Um sorriso genuíno a atravessar o rosto. Bom dia, Sigma. Muito bem, obrigado. Sigma era das Filipinas e um excelente empregado de mesa, na opinião de Ben Isaac. Vai ficar-se apenas pelo café? Sim. Só café. Não consigo comer antes das dez. Com certeza, doutor Isaac. Se precisar de mais alguma coisa não hesite em chamar-me. Desejo-lhe um dia muito agradável. Obrigado, Sigma.
Ben Isaac continuou a ler o The Financial Times, por deformidade profissional. Nenhuma leitura lhe dava mais gozo. Analisar o mercado, ler nas entrelinhas, avaliar oportunidades de investimento. Só numa página conseguia idealizar milhões de libras em receita. Se fosse caso disso aconselharia Ben Júnior a investir ou a ter cuidado com determinado título. Levantou a chávena de café e tragou um pouco. Preto, puro, sem açúcar. Que melhor forma de encarar o dia? Só ao pousar a chávena reparou num pequeno envelope na borda do pires. Que estranho. Sigma não o mencionara. Pousou o jornal sobre a mesa com a intenção de retomar a leitura e abriu o envelope. Dentro um pequeno papel em tom creme. Meia-noite piscina statu quo.
Ben Isaac releu o papel três vezes. Olhou ao redor das mesas que o ladeavam. Poucas pessoas se haviam levantado. Uma família de cinco ao fundo, um casal a três mesas de distância. Ninguém suspeito, mas quem via caras não via corações, tão-pouco intenções. Avistou Sigma que trazia uma bandeja e se dirigia à mesa da família de cinco, repleto de croissants, pão, queijo, fiambre. Sigma, por favor, chamou Ben Isaac. O filipino acercou-se dele. Quem lhe deu este envelope?, perguntou, tentando encobrir a inquietação que o acometia. Qual envelope, doutor Isaac? Ninguém me deu nenhum envelope. Este..., mas desistiu. Aquilo estava muito acima da compreensão de Sigma. Esqueça. Foi confusão minha. Obrigado. Precisa de mais alguma coisa, doutor Isaac? O israelita levou alguns instantes a responder que não. Estava tudo bem. Apesar do ambiente fresco, aclimatado pelo ar condicionado, Ben Isaac transpirava. Levou o guardanapo à testa para limpar um pouco da película que se formava. Aquilo incomodara-o. Levou a mão ao bolso dos calções que Myriam o obrigara a usar e tirou o telemóvel. Dedilhou a memória telefónica e deu luz verde para a chamada se efectuar. Pouca tempo depois soou o bip que indicava que o telefone destinatário estava a tocar, ou vibrar ou o que quer que os telefones fazem, hoje em dia. Atende. Atende. Atende. Deu por si a suplicar, embora fosse sua intenção apenas pensar sem falar. Nada. Não obteve resposta. Segundos depois atendeu o gravador de chamadas. Ligou para Ben Isaac Júnior…» In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT